domingo, agosto 27, 2006

Do púlpito ao ambão

Sinto particular vontade de falar do mais recente livro de Roberto Beretta, jornalista do Avvenire, diário cristão italiano. Em Da Che Pulpito?, Beretta critica arguta e humoradamente um dos calcanhares de Aquiles da vida católica: a fraca qualidade das homilias. Abordando a realidade do seu país, o autor inventaria os mais useiros erros praticados pelos sacerdotes e diáconos, entre os quais o excessivo alongar da prédica, o tom teatral, a leitura monótona, a fábula infantilizante para despachar, o politicamente correcto, a denúncia escandalizada e o catastrofismo. Em entrevista ao La Repubblica de 17 de Agosto, e ao arrepio de um primeiro mau acolhimento da obra por alguns eclesiásticos italianos, Monsenhor Vicenzo Paglia, bispo de Terni e presidente da Federação Bíblica Católica, validou o levantar de tais questões, afirmando estar a hierarquia ciente da existência de muitos pregadores padecendo de falta de preparação, excesso de moralismo e a dificuldade em tocar o âmago dos cristãos. Declarou também que, em inquérito conduzido em França, Itália e Espanha, 80% dos praticantes apenas tomam contacto com textos sagrados e suas interpretações aos domingos, o que torna a homilia ainda mais central e determinante para o conhecimento da Bíblia. Não é descabido supor que em Portugal o cenário seja semelhante, que a homilia seja a melhor oportunidade do católico contactar com os fundamentos da sua religião. Como não é descabido afirmar que os vícios de prédica são os mesmos que Berretta identifica.
A igreja onde ouvi hoje homilia estava cheia, não apenas dos mais velhos da terra, como dos seus familiares e visitantes de fim-de-semana - uma boa oportunidade pastoral, dir-se-ia. Porém, a prédica foi demorada, repetitiva, dramática e, a propósito da leitura da Carta de São Paulo aos Efésios (5, 21-32), em que se fala, entre outras questões, do dever de submissão da mulher ao esposo, ao invés de dizer algo assim, de contextualizar historicamente, o sacerdote optou por ser literal e (se bem fixei enquanto cerrava os dentes), propor um resignantíssimo: "É duro? É. Mas tem de ser."
Mais cheia estaria, como de costume, a igreja da aldeia situada uns poucos quilómetros abaixo, conhecida por ter pregador sem delongas ou afectações, capaz de transmitir a sua reflexão sobre os textos sagrados de forma perceptível, substancial e, não poucas vezes, entusiasmante. O tempo dos retóricos do púlpito barroco já lá vai, pregadores do ambão dos nossos dias, procuram-se.

Foto: Ambão, Igreja da Spirit of Christ Catholic Community, 2001, EUA.

7 Comments:

Blogger Luís Aguiar Santos disse...

Cara Cláudia, para desenjoar, há sempre a possibilidade de entrar numa igreja evangélica...! :)

11:34 da manhã  
Blogger Pedro Picoito disse...

Concordo com quase tudo, embora ache que o tom deste post se aproxima um pouco das homilias catastrofistas-moralistas que quer criticar. De qualquer modo, lembro que os "párocos de aldeia", por muito que nos irritem um pouco a nós, católicos da cidade, são uma instituição com séculos de existência e que assegurou à Igreja uma difusão capilar do Cristianismo em todo o mundo (não só na Europa). Graças ao seu conhecimento das populações (no terreno e não no papel...), muitos dos triunfos da Igreja devem-se a esses D. Camilos anónimos, tantas vezes toscos, tantas vezes heróicos. A sua má fama é injusta. A própria Igreja se esquece um pouco deles. André Vauchez, no seu monumental estudo sobre os processos de canonização na Idade Média, nota que o pároco elevado aos altares é uma raridade. Nem todos podiam ser como S. Martinho de Soure, o único exemplo português de que me lembro. Até porque o que está aqui em causa é a eterna desconfiança dos intelectuais urbanos, os tais que Le Goff estudou e que conduziam os processos de canonização, pelo pagus (o campo) suspeito de todas as rudezas. Espero não ofender a Ana Cláudia se lhe disser que descende de tais intelectuais da cidade, sempre desconfiados dos campónios e dos seus curas...

12:50 da tarde  
Blogger Cláudia [ACV] disse...

Num momento a dar para o ecuménico, porque não? Não seria marinheira de primeira viagem :)

1:10 da tarde  
Blogger Cláudia [ACV] disse...

[nota: o comentário anterior era para o Luís]

Pedro,
pretendi apenas fazer uma crítica e expressar uma aspiração acerca de um facto a que sou sensível; daí ao moralismo-catastrofista, esperava que ainda fosse uma légua; se o meu tom não foi moderado, ou sequer leve e bem humorado como o de Beretta, foi por tê-lo escrito com a frustração de quem ouviu a enésima homilia insatisfatória ainda presente. Estarei a ser demasiado exigente? No panorama de excesso de trabalho com que a maior parte dos sacerdotes, muitas vezes de avançada idade, hoje se depara, com a acumulação de funções a que estão sujeitos, provavelmente sim.

Quanto aos párocos de aldeia, garanto-lhe que não me irritam nada; não pretendia que se lhes lesse no post uma crítica específica, quando ela é de âmbito geral.
Os dois exemplos que refiro (o da missa a que fui, e o da missa da aldeia vizinha) são de aldeias do mesmo rural concelho, da mesma rural diocese, e um é excelente pregador(melhor que a esmagadora maioria daqueles que ouço aqui pela capital), o outro não; nos tempos que correm, não vejo relação entre a dicotomia cidade/campo e a qualidade da pregação. Podia ter usado o exemplo da minha (sub)urbana paróquia e de outra próxima, não o fiz porque não calhou, não estava na cidade quando escrevi este post. Estava na terra dos meus - inteiramente rurais - ancestrais.

7:01 da tarde  
Anonymous Anónimo disse...

Como sei que neste blog, especialmente o Fernando Martins, tem muito interesse pelo o que se passa em Espanha, recomendo a leitura desta entrevista ao Abad de Montserrat, Josep Maria Soler.

http://www.elpais.es/articulo/reportajes/faltar/verdad/decir/Iglesia/perseguida/Espana/elpdomrpj/20060827elpdmgrep_1/Tes/


"Es fácil percibir que un sector de la jerarquía católica tiene nostalgia del nacionalcatolicismo, sobre todo en ciertos círculos de la Conferencia Episcopal y, sin duda, en muchos de sus documentos y en muchas homilías. Y lo cierto es que ese nacionalcatolicismo añorado por ese sector de la jerarquía es algo del pasado. La Iglesia debe aprender a situarse en otro contexto social, y ese contexto, según la Constitución y desde la separación entre la Iglesia y el Estado, se define como un verdadero Estado laico que supone eso: una separación real entre lo que es el Estado y su lógico derecho a promulgar leyes, y lo que es la Iglesia y la misión de la Iglesia, que no tiene esa capacidad legislativa. Eso no quiere decir que la Iglesia deje de decir lo que crea que debe decir en relación con la dimensión trascendente de la persona, porque eso es enriquecedor para sociedad, pero teniendo siempre presente que en un Estado aconfesional o laico, la voz de la Iglesia es una voz que no puede imponer sus criterios a los legisladores".

8:26 da tarde  
Blogger Fernando Martins disse...

Meu/Minha caro/a anónimo/a,
Agradeço o link e a lembrança. Tentarei logo que possa voltar ao convívio dos nossos queridos leitores lá mais para o fim da semana se, entretanto, não perecer às mãos das tarefas que me enredam.
Quanto à entrevista indicada e ao excerto dela extraído e aqui apresentado apenas diria que ambos apenas ilustram os inevitáveis confrontos entre sensibilidades, partidos ou tendências que fazem a história de toda e qualquer instituição - ainda mais de uma com tão larga e rica história como é a Igreja Católica.
No entanto, e com muita pena minha, devo dizer que não me rendo à bondade indiscutível da laicidade do Estado. Muitos Estados laicos há e houve que foram e são absolutamente lamentáveis quando não sinistros. Outros há e houve que foram e são do melhor naquilo que "concerne", especialmente, ao respeito aos chamados direitos, liberdades e garantias, apesar de não serem laicos. Portanto, e como é óbvio, não basta que o Estado seja laico para que seja um bom Estado! É como a questão do regime. Não importa se é república ou monarquia. O que interessa é de que república ou monarquia se está a falar!

10:54 da tarde  
Blogger Pedro Picoito disse...

Cara Ana Cláudia
Ok. Parece-me que tresli um pouco. De qualquer modo, espero que não veja no meu comentário demasiado erudito (terei parecido mais da aldeia de cima ou da aldeia de baixo?) uma crítica à sua sua saudável exigência.

1:07 da tarde  

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