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Público o Rui Tavares e o André Freire apelaram recentemente a uma maior atenção à análise do fenómeno do terrorismo e da guerrilha. Antes disso, o Rui Ramos tinha argumentado pela necessidade de se fazer uma análise fria mesmo (sobretudo?) em tempos de guerra. São interesses que partilho e são apelos com que simpatizo. Na passada segunda-feira (21 de Agosto) o dito
Público aparentemente resolveu responder com um texto de recolha de depoimentos de «especialistas» na questão da guerrilha. Infelizmente, dos três citados só conheço um com obra (discutível mas significativa) sobre a questão - Ian Beckett. Marc Hecker é um doutorando (honroso estatuto, diga-se) que acabou de publicar um primeiro texto sobre a questão na revista do IFRI, onde trabalha. Mariano Aguirre tem comentado a questão dos conflitos internacionais em geral. O problema? Bem, o facto de que ambos dizem coisas inconcebíveis!
Hecker diz que a arma dos guerrilheiros é a kalashnikov e agora o Hizballah usa mísseis! Sendo francês é estranho que nunca tenha ouvido falar em Dien Bien Phu onde, em 1954, a guerrilha vietnamita usou artilharia que tinha trazido por trilhas na selva para esmagar a força francesa aí aquartelada. Embora torne mais compreensível que ignore os mísseis Strella fornecidos pelo bloco soviético ao PAIGC na Guiné na década de setenta, ou os Stinger fornecidos pelos EUA aos guerrilheiros afegãos na década de oitenta. Hecker, aliás, também vê grande novidade na relação do Hizballah com Estados que o apoiam e fornecem armamento, quando praticamente todos os movimentos guerrilheiros de sucesso no século XX tiveram um apoio externo significativo, e os poucos que foram derrotados (como os Comunistas na Malásia ou os Mau Mau no Quénia) estavam completamente isolados.
Aguirre vê novidade na componente social do Hizballah! E até cita o contraste com os guerrilheiros que combateram Portugal em África. Suponho que nunca tenha ouvido falar no PAICG. A preocupação com conquistar a população, não apenas com discursos políticos, mas também com acções positivos em resposta às suas necessidades sociais, é um tema central da doutrina de guerrilha - veja-se Mao! E tem um lugar destacado em todos os movimentos que foram suficientemente bem sucedidos para a poder desenvolver.
Quanto ao Ian Beckett, as suas afirmações tal como estão reproduzidas têm muito de contestável. Os terroristas usam o terror não como táctica mas como estratégia? Não vejo que o terrorismo possa ser outra coisa, objectivamente e independentemente de juízos de valor, que não uma táctica: uma forma de usar a força. A estratégia designa o uso da força armada para alcançar um determinado objectivo político. Não vejo como é que se possa dizer que para o terrorismo o terror seja uma estratégia. É a única táctica disponível para - como Beckett bem assinala - grupos invariavelmente pequenos de homens armados. Outra coisa é o fenómeno bem identificado de radicalização que torna difícil a estes grupos recuar e negociar uma solução pacífica: afinal, a disponibilidade para recorrer a violência é a condição para pertencer a uma organização terrorista. A afirmação de que os terroristas atacam alvos indiscriminadamente também não é correcta. Mesmo quando visam ou não se importam de atingir civis escolhem os alvos cuidadosamente (nem que seja no país alvo). E há movimentos terroristas - como o IRA ou a ETA - que têm adoptado, por razões estratégicas várias, uma política restritiva na escolha de alvos. Também não é verdade que seja raro os grupos terroristas terem uma infraestrutura política e social. Isso é normal desde há mais de cem anos: veja-se o nosso PRP e a Carbonária, veja-se o Sinn Fein e o IRA, veja-se o Batasuna e a ETA.
A voz mais sensata é mesmo a do General Loureiro dos Santos (o nosso exército tem alguma experiência do assunto). Cita Mao e o seu princípio bem conhecido de que a guerrilha deve procurar aproximar-se em termos de organização cada vez mais de um exército convencional. (Já o facto de Mao também recomendar que na fase final a guerrilha terá de passar por uma fase de guerra convencional é bem mais contestada e contetável, e originou alguns desastres.) Só não percebo o que é isso tem de novo. Não faltam movimentos de guerrilha que alcançaram um grau de disciplina e coordenação próxima de um exército convencional: desde os comunistas chineses e vietnamitas, à FLN argelina, passando pelo PAIGC, os Tigres Tamil e o Hizballah (cuja capacidade militar tem sido elogiada e temida pelos israelitas nos últimos anos). O uso de abrigos fortificados, embora realmente mais raro, também surge em vários casos, nomeadamente foi muito desenvolvido pelos guerrilheiros vietnamitas ou afegãos.
Em suma, quem queira esclarecimentos sobre a importância crescente da guerrilha e do terrorismo - mas desde pelo menos a Segunda Guerra Mundial - deve ler com algumas reservas o Público. Talvez seja só a dificuldade de fazer jornalismo de qualidade em Agosto quando toda a gente está de férias. Ou isso, ou o facto de que a imprensa (e não só) às vezes parece ter uma certa dificuldade em perceber que nem tudo o que é importante tem necessariamente de ser novidade.
FOTO: Guerrilheiros Vietnamitas em Dien Bien Phu.
2 Comments:
Tem toda a razão, veja-se esta referência publicada num jornal libanês:
Le Hezbollah reconnaît s’être inspiré de la théorie guévariste, et de l’expérience cubaine en particulier (mais aussi de l’expérience vietnamienne) pour mettre en place sa propre expérience révolutionnaire. A ce niveau, le « foco guerillero » établi par le Hezbollah, qui s’étend, dans ses limites maximales, de la banlieue-sud (QG idéologique) aux frontières des zones occupées, se trouve être un modèle d’organisation, avec l’établissement de plusieurs associations sociales et caritatives orientées sur les objectifs révolutionnaires, pour maintenir un climat favorable à la mobilisation permanente, une interaction perpétuelle entre le milieu et la résistance – et c’est dans ce cadre aussi que la notion de « martyr » joue un rôle au niveau de l’organisation sociale(http://www.lorientlejour.com/page.aspx?page=article&id=hezb3).
A última frase é uma grande verdade.
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