quinta-feira, agosto 10, 2006

A Espanha arde… e arde bem!

A última semana tem sido fértil em fogos florestais na nossa vizinha, rica e desenvolvida Espanha. Ali, os fogos têm atingido a pobre e subdesenvolvida Galiza. Mas nesta ardem as suas províncias mais “ricas” (A Coruña e Pontevedra). Aparentemente, todos por lá foram apanhados de surpresa. Sinceramente, não sei porquê. Tentarei explicar algumas coisas.
Desde os meus 22 meses – garante minha mãe – que passo quase religiosamente, com a excepção de três ou quatro verões, as minhas férias na Galiza. Meus avós paternos eram galegos. Deixaram ao meu pai e aos seus dois irmãos uma casa tosca e umas courelas num lugar chamado Esfarrapada. Pertence à paróquia de Anceu, concelho de Ponte Caldelas, província de Pontevedra.
Toda a paróquia, que dista por estrada cerca de 20 km de Pontevedra (seguindo desta em direcção à Cañiza), envelheceu e despovoou-se nos últimos 20 anos. É possível que o concelho de Ponte Caldelas também. Mas, sinceramente, e assim à primeira vista, terá mais envelhecido do que perdido população (o que tem acontecido a toda a Europa). O seu crescimento económico, com base em obras públicas, construção civil e serviços – comércio, turismo, hotelaria – tem sido uma constante desde o início da década de 1980 mas, sobretudo, nos últimos 15 anos, embora nos últimos 5 o ritmo pareça ter acelerado. É claro que se pode argumentar que este crescimento comporta inevitavelmente problemas. Só em parte é verdade. Ponte Caldelas – que até meados da década de 1980 se chamava ainda Puentecaldelas –, vila e sítios rurais, necessitava de muito cimento e alcatrão, mas também de uma diversificação da actividade económica. Não havendo possibilidade de por lá instalar indústrias modernas, é óbvio que, para além de construção civil e obras públicas, apenas os serviços podiam salvar as populações e sua terra. O problema esteve, e ainda está, no facto deste crescimento não ter sido acompanhado de um investimento sistemático e avultado em saneamento básico nas aldeias e numa protecção eficaz do meio ambiente e, claro está, da floresta e do seu entorno. Porém, construiu-se um “instituto” de raiz, onde é possível que os jovens autóctones e de concelhos limítrofes estudem até aos 17 ou 18 anos.
O exemplo que aqui dou pode, naquilo que tem de menos bom, ser multiplicado por muitos outros concelhos galegos, independentemente dos partidos e dos “alcaides” que os têm governado. É certo e sabido que a Galiza é globalmente conservadora e católica. Que o é sobretudo – ainda – nos meios rurais e nas cidades mais pequenas e provincianas – estou-me a lembrar das duas outras capitais de Província (Lugo e Ourense). Ponte Caldelas, por exemplo, como outros concelhos, foi governada pelo mesmo alcaide durante quase duas décadas. À primeira, há quase trinta anos, foi eleito pelas listas da UCD – se não me falha a memória –, um partido do centro criado por Adolfo Suarez com o apoio do rei Juan Carlos para levar a transição para a democracia a bom porto. Desfez-se a UCD, o alcaide de Ponte Caldelas passou-se para a Aliança Popular (mais tarde Partido Popular). Um AVC incapacitou há três ou quatro anos o dinossauro alcaide. Sucedeu-lhe o filho. De vereador da cultura e número dois nas listas do executivo concelhio, passou a número um. Concorreu a seguir como cabeça de lista às eleições locais e ganhou. Não sei o que o futuro lhe reserva, nem se pensa recandidatar-se. Certo é que não vejo ninguém capaz de se lhe opor com êxito, iniciando assim no conselho um ciclo de alternância democrática que desgraçadamente tarda.
Vem isto a propósito dos fogos florestais. Estes, na Galiza, mesmo antes da desertificação do interior e do quase desaparecimento da agricultura e da pecuária familiar e de subsistência, foram sempre uma realidade estival. Resultaram, e ainda resultam, em primeiro lugar, da florestação dos baldios que atingiu o seu ponto alto na década de 1960. Na Galiza, como em Portugal, o povo nunca viu com bons olhos a chegada dos pinheiros bravos e dos eucaliptos. As árvores roubavam-lhes as pastagens e outros recursos vitais para a pecuária e a agricultura. Por outro lado, dificultava o acesso às árvores autóctones – o castanheiro e o carvalho, fontes de combustível de grande qualidade e de alimento para o gado. Portanto, se até à década de 1960 os fogos nos montes galegos não criavam problemas de maior e eram naturalmente ateados pelas populações às pastagens durante o Verão – porque só assim podiam voltar a ter com as frequentes chuvas de Verão erva verde nos pastos – depois daquela malfadada década transformaram-se tanto num símbolo de resistência à florestação indesejada, como um dano ao meio ambiente, ao equilíbrio social e à segurança das populações e dos seus bens.
Com o despovoamento dos meios rurais, o desinteresse do Estado e de muitas empresas e empresários pela floresta – tanto pela tradicional como pela moderna – o monte galego foi, no geral, deixado ao abandono. Apesar disso continuou a arder porque foi sendo posto a arder. Por interesse de empresários da construção civil, por interesse de madeireiros, por acção de pirómanos, por razões de política local, como resultado de rivalidades e ódios também locais entre indivíduos ou famílias, por desleixo, por acidente. O que é certo é que cada vez mais – e apesar de formalmente existir na Galiza uma política florestal da Xunta e dos concelhos há mais de 20 anos – a floresta e o monte galegos são – salvo honrosas excepções –, uma vergonha política, económica, social e cultural. Por culpa das autoridades nacionais, regionais e locais. Por culpa dos cidadãos, dos interesses económicos e, até, dos grupos ou associações ambientalistas. De qualquer modo, e como o PP da Galiza – com Manuel Fraga Iribarne à sua frente – governou ininterruptamente a Galiza durante década e meia, nacionalistas galegos e socialistas galegos foram lançando cada vez mais e maiores criticas contra à política florestal da Xunta, com a agravante de a crítica política se ter crescentemente transformado em insinuações e acusações em torno da honestidade da generalidade dos homens e mulheres que conduziam o Governo em Santiago de Compostela e nos inúmeros concelhos galegos governados pelo PP. No fundo, e cada vez mais, PSG e BNG criticavam o PP e os seus dirigentes não pelo facto de planearem e executarem más políticas mas por serem manifestamente uns canalhas que tanto podiam ter interesse pessoal, económico ou político em que os montes ardessem, ou que pura e simplesmente lhes era indiferente se os montes ardiam ou não. Em duas palavras eram, ao menos, desonestos e corruptos.
As vitórias que BNG e PSG foram conseguindo nas duas últimas eleições locais na região demonstraram porém que, infelizmente, e apesar das acusações lançadas ao PP, aqueles dois partidos se tinham precipitado nas acusações produzidas e na escolha do discurso. Não só porque poucos são os casos em que a suposta corrupção das autoridades eleitas em listas do PP chegou aos tribunais – ou depois de aí chegar foi condenada – mas, sobretudo, porque o PSG e o BNG no poder têm sido, globalmente, uma desilusão. Em muitos governos locais – tanto em concelhos de grandes como de pequenas dimensões – os alcaides da esquerda e respectivas equipas não só não se mostraram à altura dos desafios políticos com que se viram confrontados – o que é natural –, mas, sobretudo, não tardaram em mostrar muitos dos piores defeitos de carácter que apontavam aos seus adversários do PP (umas vezes com razão, outras sem ela). E nisto a actual crise provocada pelos acidentes florestais é paradigmática.
Assim, e a propósito dos fogos ocorridos na última semana, o Governo da Galiza – uma coligação PSG e BNG –, de mão dada com a ministra do Meio Ambiente em Madrid, trataram de demonstrar não só toda a sua incompetência, mas, sobretudo, que a sua superioridade moral não passa de uma coisa de fachada. Deus, se existe, vingou-se dos políticos, embora mais uma vez sacrificando imerecidamente os galegos. Fê-lo para voltar a demonstrar uma vez mais a péssima qualidade da classe política espanhola – facto multissecular – e, em particular, a dos políticos galegos – facto milenar, mas de que Franco é o exemplo mais destacado.
Se há um par de anos a incompetência de uns e de outros fez com que fosse gerido de modo miserável o desastre ecológico decorrente do naufrágio do petroleiro Prestige – o que sucedeu ao largo da Costa Morte –, essa mesma incompetência garantiu que, a par das péssimas condições atmosféricas, boa parte da Galiza ardesse facilmente nos primeiros dias de Agosto de 2006. A incompetência criminosa manifestou-se a vários níveis. Mas é notável que uma parte dela tenha decorrido da chamada miséria do nacionalismo. Chegada ao poder a esquerda nacionalista optou por rapidamente aplicar à Galiza um conjunto de leis que impedem que determinadas funções no funcionalismo público galego não possam exercidas por quem não tenha qualquer certificado escolar – ou equivalente – de domínio da língua galega – mesmo que seja galego e sempre tenha falado galego. Isto fez, entre outras coisas, com que o número de cidadãos na Galiza – mas também em Espanha e na Europa – à partida disponíveis para cuidar da floresta e, caso fosse necessário, combater fogos florestais, se reduzisse, segundo algumas fontes, em mais de um terço nos últimos doze meses. Por outro lado, toda a cúpula técnica e política de combate aos incêndios florestais que óptimos resultados produzira na última década, foi decapitada pela nova Xunta, sendo substituída, quando foi substituída, por gente incompetente e inexperiente. Porém, e quando a Xunta finalmente viu a catástrofe que se abatia sobre os montes galegos – e sobretudo a catástrofe política que ameaçava abater-se sobre ela –, reagiu. Em primeiro lugar, readmitiu aqueles que tinha dispensado por não possuírem certificado escolar de galego. Em segundo lugar, apelou para o Governo de Madrid. Em terceiro lugar, e tanto desde Santiago de Compostela como de Madrid – começando por aqui – fizeram-se declarações acusando – sem quaisquer provas – aqueles que a Xunta tinha excluído das equipas de combate aos incêndios de serem os responsáveis pelo ateamento dos fogos. A partir daqui, Xunta e Governo alijaram responsabilidades – mesmo quando afirmavam que as assumiam todas – dizendo, veja-se bem, que se estava perante fogos deliberadamente ateados com intuitos políticos. Alguma prova foi apresentada? Algum indício? Talvez este (pode ser que tenha sido detido o primeiro rosto de uma grande conspiração incendiária)! O El País, a RNE, a TVE e a TVG engoliram a pílula e são, como sempre, órgãos de propaganda ao serviço de Zapatero e de Toriño, do PSOE, do PSG e do BNG.
Perante estas declarações delirantes só faltou que os dirigentes do PP declarassem que também há 5, 10 ou 15 anos os fogos que sempre foram atingindo a região tinham afinal sido ateados não for cidadãos anónimos com motivos mais ou menos obscuros, mas por gente às ordens do PSG e do BNG. Felizmente, Rajoy não caiu na tentação da demagogia fácil e nem ele nem ninguém no PP tem usado a questão dos incêndios florestais como arma de arremesso político para além do razoável.
Só duas notas finais. Aquando do naufrágio do Prestige grande parte da imprensa espanhola e até internacional, bem como aqueles agora no poder em Santiago de Compostela e em Madrid, disseram do PP, de Aznar e de Manuel Fraga o que Maomé não disse do toucinho. Agora, no entanto, grande parte dos media mantém-se compreensiva e os socialistas e os bloquistas pedem a compreensão que não tiveram para com os seus adversários de ontem. E isto sucede quando os fogos dos últimos dias na Galiza não só configuram uma catástrofe ambiental mais grave do que aquela provocada pela maré negra nas costas das Rias Baixas no Inverno de há três anos, como as proporções da catástrofe devem quase tudo à incompetência política e à arrogância moral dos governos de Madrid e de Santiago de Compostela, já para não falar no mais profundo sectarismo e na mais irresponsável demagogia.
Porém, o problema, o verdadeiro problema, não se resume aos incêndios florestais, às suas causas e aos seus efeitos mais ou menos imediatos ou longínquos. De repente, e um tanto ou quanto estupidamente, não é só a floresta galega que começa a arder a uma velocidade e com uma intensidade impressionantes. É a própria Espanha que arde. Arde fruto da irresponsabilidade dos políticos que a governam. Se a geração da transição (Gonzalez, Fraga Suarez, Pujol, Juan Carlos I), apesar dos muitos erros cometidos, esteve à altura dos desafios, a segunda não o tem estado (Aznar e Zapatero, Maragal e Toriño, entre muitos outros). Por isso a Espanha arde, e já começou a arder há muito tempo. Esperemos, embora não acredite, que os espanhóis demonstrem bom senso e apaguem rapidamente o fogo. Caso contrário será grande a possibilidade de que Portugal não deixe de ficar chamuscado. E ficar ainda mais chamuscado por causa dos espanhóis, quando nós já nos chamuscamos tanto, não deixaria de ser muito mais do que uma inaceitável rendição à natural tristeza e escuridão do negro.

4 Comments:

Anonymous Anónimo disse...

gostaria de fazer alguns comentários ao post.

em relaçao à obrigatoriadade de saber Galego é bom clarificar que foi o governo do PP que criou essa lei para todos os candidatos a trabalhar para a Xunta (pessoalmete estou de acordo).


"Perante estas declarações delirantes só faltou que os dirigentes do PP declarassem que também há 5, 10 ou 15 anos os fogos que sempre foram atingindo a região tinham afinal sido ateados não for cidadãos anónimos com motivos mais ou menos obscuros, mas por gente às ordens do PSG e do BNG."

nao faltou porque isso era o que declarava o Fraga, acusando o BNG, sempre que havia incêndios.

é verdade que todo sistema de combate foi mudado pelo novo governo mas falar em óptimos resultados na última década parece-me incorrecto. comparando com mesmo período do ano 2004, este ano o número de hectares ardidos é bastante menor.

dizer que "as proporções da catástrofe devem quase tudo à incompetência política e à arrogância moral dos governos de Madrid e de Santiago de Compostela, já para não falar no mais profundo sectarismo e na mais irresponsável demagogia" pode ser aplicado a qualquer governante português, galego ou espanhol de qualquer partido político. e pode ter a certeza que vai continuar a ser assim independentemente do partido no poder. pelo menos eu nao tenho muita esperança.

o mais lamentável destes incêndios é que a grande maioria sao deliberadamente ateados. se neste momento está na Galiza vá falar com as pessoas e vai ver as coisas incríveis que estao a acontecer.

dois breves comentários para terminar: a metáfora do último parágrafo faz-me sorrir e em relaçao ao prestige a grande maioria das críticas feitas ao anterior governo foram mais do que justificadas.

1:17 da tarde  
Anonymous Anónimo disse...

20 presos até ao momento.

1:53 da tarde  
Blogger Fernando Martins disse...

O problema com o galego não está na sua autoria mas na forma como foi aplicada neste caso concreto. E quem a aplicou em termos absolutamente lamentáveis, naquilo que à política de combate aos fogos diz respeito, foi o actual governo da Xunta. Aliás, estas leis de língua existem nas comunidades com idioma próprio como o País Basco, a Catalunha, a Galiza, Comunidade Valenciana e Baleares. Parecem-me idiotas e discriminatórias, para não dizer outra coisa. Mas o (ou a) leitor(a) anónimo(a) concorda está no seu direito.
Não me lembro de alguma vez ter lido ou ouvido Fraga acusar o BNG de atear fogos florestais. Mas se o fez e não apresentou provas, demonstrou, mais uma vez, ser capaz de fazer políca da mais rasteira. Só espero que o (ou a) comentador(a) não ache que pelo facto de Fraga ter feito assim, a ministra do Meio Ambiente em Madrid também o pode e deve fazer. Sobretudo pertecendo a um Governo que se reclama de uma outra índole moral e ética. Mas, como se sabe, pela boca morre o peixe.
Quanto à questão do (aparentemente anómalo) ateamento criminoso de fogos na Galiza, devo dizer apenas que há tentação, por parte de alguma opinião pública e muita imprensa, de valorizar a criminalidade por trás destes acontecimentos quando a cor política no poder lhe agrada, e a devalorizar essa mesma componente criminal quando a cor política no poder não lhe agrada. Não sei se é o quase dos meus dois comentadores, seguramente não é o meu, e é-o, muitíssimo, de boa parte dos media espanhóis (e galegos e, já agora, portugueses).
Quanto aos vinte dtidos, só espero que sejam todos verdadeiros culpados. Que a lei seja respeitada, que sejam julgados e condenados. Caso contrário, estar-se-á apenas perante uma manobra de propaganda para apaziguar a opinião pública.
Quanto ao Prestige posso assegurar que o comportamento de Aznar e do seu Governo foi vergonhoso. De forma quase tão vergonhosa comportou-se a oposição espanhola e galega. Salvou-se o comportamento do rei.

3:04 da tarde  
Anonymous Anónimo disse...

neste caso a lei foi inicialmente aplicada correctamente e agora dada a necessidade de pessoal foi aberta a excepçao. essa lei que considera idiota a mim parece-me normal. se eu vivo numa comunidade com duas linguas oficias é normal que os funcionários públicos me atendam na lingua que eu considero mais adequada. por alguma razao sao funcionários PÚBLICOS.

é evidente que os comentários do Fraga nao justificam os comentários da ministra (já famosa pela fantástica soluçao que encontrou para a piscina ilegal do Pedro J.). já agora parece-me importante que fique claro que nao vou ser eu a defender o actual governo de espanha. gosto tanto deste governo como do anterior, ou seja, muito pouco (gosto mais quando, como agora, governam sem maioria absoluta). disto isto, nao tenho nenhuma problema em salientar o que de bom faz este governo (da mesma maneira que o fazia do anterior), o que para quem lê muito do que se escreve por Portugal é NADA.

sobre os detidos estou completamente de acordo com o que escreve. é uma questao da justiça e nao política.

para terminar, gostava de lhe comentar o que a meu ver faz falta na política galega: a criaçao de um partido nacionalista de centro direita (tipo PNV e CiU). uma coisa é certa, gosto muito de ouvir o Feijóo falar sem complexos em galeguismo.

4:53 da tarde  

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