quarta-feira, maio 10, 2006

D. António Ferreira Gomes (1906-1989)

O futuro bispo António Ferreira Gomes, quando professor e reitor no seminário no Porto mandou gravar nas paredes do Vilar o seguinte mote para os futuros padres : De joelhos diante de Deus, de pé diante dos Homens. Não se pode dizer que não avisou, ou que não cumpriu.
A sua carta a Salazar foi um passo importante na deslegitimação do regime. O texto não está, claro, acima de críticas, sobretudo históricas que visem situá-lo. Mas é ainda hoje um documento pleno de vigor e actualidade, ao tocar a questão social e o problema do financismo à outrance, ao recusar o conforto da sacristia para os católicos (algo reclamado por todos os estatismos), ao clamar pelas liberdades e direitos fundamentais de todos. Um texto de corajoso liberalismo, integralmente católico e catolicamente integral.

D. António, há cem anos nascido, pagou com dez anos de exílio, ter escrito, na famosa carta memorial de 13 de Julho de 1958 a Salazar, entre outras coisas:

Na situação presente é quase fatal que o operariado veja, como vê, no Estado o aliado do patronato. [Relativamente à negação por Salazar do direito à [greve] Tenho pena realmente, porque eles [os que reclamam o direito à greve] estão com a doutrina da Igreja.

Seja qual for o conforto ou riqueza que se atribuam a um indivíduo ou a uma classe, nunca eles estarão satisfeitos enquanto não experimentarem que são colaboradores efectivos, que têm a sua justa quota parte na condução da vida colectiva, isto é, que são sujeito e não objecto da vida económica, social e política.

Eu não quero tomar partido pelos excessos do socialismo ou pelo descalabro financeira; [...] mas não posso deixar de pensar que [...] se o equilíbrio financeiro é óptimo, nunca deve deixar de estar ao serviço do homem [...]. Não perco de vista as dificuldades, ansiedades e perigos que as más finanças oferecem por esse mundo; mas parece-me que, através de tudo, se procura salvar um princípio verdadeiro: que as finanças são o primeiro servidor e não podem ser, senão excepcional e transitoriamente, o senhor da Nação.

O Estado que nem sempre estará bastante presente naquilo que é propriamente seu, está sumamente presente naquilo que só supletivamente é seu, como na educação e na assistência para não falar na economia e na sociologia.

[Salazar] parece reduzir a vida política à Administração, tendo em conta (e creio não ser injusto) que esta é toda ou quase toda a ideologia prática da Situação, não pode deixar de concluir-se que o homem não quer pensar ou realizar-se politicamente [...]. Ora a Igreja não pode impor esta doutrina a ninguém, decerto nunca a seus filhos.

Esta negação da livre e honesta actividade política é também uma política; apenas, má política.

O problema enorme, histórico e decisivo é este: pode ou não pode o católico ter dimensão política? Deve ou não deve o católico ter dimensão política? Tem o Estado qualquer objecção a que a Igreja ensine livremente e por todos os meios [...] a sua doutrina social?

Tem o Estado qualquer objecção a que os católicos definam, publiquem e propaguem o seu programa ou programas, poiticalmente situados? Tem o Estado qualquer objecção a que os católicos, se assim o entenderem e quando o entenderem, iniciem o mínimo de organização e acção políticas?

Devo precisar que ao formular estas perguntas, não quero sugerir ou pedir qualquer benevolência ou favor para a actividade cívico-política dos católicos [...]. Apenas sugiro e peço, mas isso com toda a nitidez e firmeza, o respeito, a liberdade e a não descriminação devidos ao cidadão honesto em qualquer sociedade civil.

PS - Quem quiser ler mais D. António, tem aqui a bibliografia, ainda incompleta, que tem vindo a ser publicada pela sua fundação Spes.

PPS - Mesmo a propósito...

1 Comments:

Anonymous Anónimo disse...

Um artigo muito bem escrito. De referir que o texto aqui transcrito foi retirado do pró-memória e não da Carta a Salazar, como erradamente ficou conhecida.

Afonso F. Gomes

3:50 da manhã  

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