terça-feira, outubro 10, 2006
A blogosfera que conheço, nela me incluindo, excita mais respostas de natureza protopática, essa sensibilidade cutânea primeira, difusa e emotiva, do que epicrítica. Vem tal intróito a propósito de ter lido este post, e querer chamar a atenção para a forma como neste caso, e cada vez mais frequentemente, nos mais variados contextos, se invocam os gregos de forma perfeitamente surpreendente.
No Diário Ateísta, o qual, conforme o Bruno já referiu (e é fácil de comprovar, visitando), é mais fórum de anti-católicos do que ateus interessados no debate com outros ateus, ou com não-ateus, ou na reflexão a propósito da crença e da descrença (excepção feita a Ricardo Alves, a escrever também no blogue Esquerda Republicana, demonstrando sempre a civilidade inerente a quem deseja comunicar com quem pensa de modo diferente), Palmira F. da Silva afirmou: "O ateísmo, normalmente reduzido ao seu significado etimológico, isto é, a negação de Deus (ou deuses), na realidade é a posição filosófica herdeira da filosofia grega, que correspondeu ao abandono das explicações religiosas até então vigentes [bold nosso] e em que se procurou, através da razão e da observação, um novo sentido para o universo. Uma das escolas filosóficas mais antigas, associada ao atomismo, nomeadamente como foi desenvolvido por Epicurus, o primeiro ateísta de que há registo histórico, assentava na existência exclusiva de causas naturais para todos os aspectos da natureza [bold nosso]. O ateísmo, se quisermos, corresponde à evolução desta escola filosófica na medida em que os ateístas não sentem qualquer necessidade do sobrenatural, isto é, o Universo é simplesmente aquilo que vemos, é a única realidade existente e nós somos apenas um infíma consequência de processos naturais casuísticos."
Se bem li, defende a autora afirmações sem qualquer suporte científico: apresenta a filosofia grega como una na rejeição de uma ou mais mundividências religiosas; define Epicuro de Samos como ateísta, ou seja, não apenas alguém que nega a existência da transcendência, um não-religioso, ou ateu, mas como ateísta, alguém que defendeu e difundiu tais posições.
Não é preciso ser especialista em História e Filosofia Clássicas para rebater este encadeamento de frases, a começar pelas concernentes à unidade e irreligiosidade de pensamento dos gregos. Bastaria atentar na diversidade de pensamento desde a era pré-socrática, para começar lá bem atrás, para se pensar duas vezes antes de falar de uma filosofia grega, para mais irreligiosa.
Quanto a Epicuro, não é preciso conhecer o que diz de Diógenes Laércio na sua obra histórica, nem ter lido a Epicurea de Usener. Ou se calhar até é. Mas bastaria, por exemplo, ter lido esse livro de síntese e referência, com honras de recomendação na coluna lateral esquerda do próprio Diário Ateísta, a História do Ateísmo, de Georges Minois. Pois não se lê aí que o ateísmo na antiguidade era extremamente raro? Que o tão citado Epicuro, como o posterior Lucrécio (tão citado também), dificilmente podem ser considerados ateus, já que afirmavam a existência da alma, apesar de a considerarem finita, de um intermundos, e da transcendência (sobre o seu conceito, veja-se a propósito o preclaro post no Combustões)? Que a cultura das suas épocas não lhes poderia fornecer o aparato conceptual para a formulação do ateísmo como hoje o entendemos (cf. pp. 66-68, versão francesa de '98, ou na correspondente edição portuguesas) ?
Para quê propôr um tal anacronismo, uma tal simplificação? O Ateísmo perde ou ganha mérito por uma questão de antiguidade? Claro que não.
Isto de conhecermos bem os gregos, como outros que se lhes seguiram, importa muito. É isso, ou algum straussiano secretivo (sic) como os pintados por Pedro Arroja - crente em que cultura e a civilização são conceitos inventados por uns filósofos antigos para mandarem em toda a gente - acabar a mandar em nós.
[Imagem: Capa da Action Philosophers! deste mês, nº7 da hilária revista da Evil Twin Comics. Aos meus amigos ateus dedico o link para a bio-bd-novela de São Tomás de Aquino.]
10 Comments:
O próprio exemplo que a Ana Cláudia dá - de um post no Diário Ateísta a falar sobre o ateismo de filósofos gregos - nega a asserção - perfeitamente disparatada - com que ela começa o seu post, de que o Diário Ateísta é sobretudo um "fórum de anti-católicos".
Não costumo ler o Diário Ateísta mas, quando lá vou, verifico que não mais do que metade dos seus posts se referem especialmente à religião católica. O judaismo, o islamismo, e outras formas de cristianismo que não o catolicismo, também são presença assídua no Diário Ateísta. O lugar destacado que o catolicismo lá ocupa é tão justificável quanto o lugar destacado que as alocuções do papa, e as opiniões dos clérigos católicos, encontram nos nossos mídia em geral - ou seja, são apenas um reflexo da posição tradicionalmente dominante que o catolicismo tem na religiosidade portuguesa.
Luís Lavoura
Concordo com a Ana e acrescento o seguinte: o ateísmo "como o conhecemos" só tem sentido depois da experiência histórica das religiões monoteístas (ou, se quisermos, da tradição judaico-cristã-islâmica). Um grego antigo, alheio a esta tradição, não chegava a colocar a questão da "descrença" em termos de ateísmo moderno porque o seu oposto - o conceito de Deus como aquela tradição o veicula (com matizes importantes) - não era o ponto de partida. E o ateísmo moderno é essencialmente um questionamento da tradição monoteísta.
Para um grego antigo ou para um romano antigo a dimensão cívica da religião era bem mais importante do que como forma de explicação do universo. Daí que, para muitos romanos antigos, o cristianismo fosse um forma de «ateísmo» - a negação dos deuses da cidade, dos cultos que davam sentido à vida pública, a afirmação de um poder independente do poder de César que podia criticá-lo a partir de uma outra esfera, a espiritual.
Digo Crítias e questiono-me: haverá homossexualidade na Arábia Saudita?
Luís,
pois eu acompanho com atenção, e há anos, o Diário Ateísta. Se acha natural essa metade de posts dedicados à ICAR(e olhe que são um bocadito mais de metade), "reflexo da posição predominante" da ICAR, reflexo esse que habitualmente inclui pérolas adjectivas como "delirante" para se referirem a João Paulo II, "sapatinhos vermelhos" para designar Bento XVI, "patife" ou para designar este ou aquele personagem histórico católico,"proxenetas de Deus" para se referir a eclesiásticos, bem, então compreendo que considere a minha asserção "disparatada".
Ana Cláudia,
não concordo com muitas das adjetivações utilizadas no Diário Ateísta. É por causa dessas adjetivações exageradas e delirantes que não gosto de ler esse Diário, a não ser ocasionalmente.
Mas, faço notar que os autores do DA não usam essas adjetivações exclusivamente para com os líderes católicos. Usam-nas também para outros religiosos. Pelo que, não considero apropriado dizer que eles são essencialmente anti-católicos.
Faço ainda notar que quem usa essas adjetivações é essencialmente o Carlos Esperança. Pelo contrário, os artigos da Palmira Silva são geralmente de bom nível, e contêm muitas verdades.
Luís Lavoura
Sou ateu (como diz um amigo, dos militantes - seja lá isso o que for). No meu weblog não há link para esse diário, não me revejo. Mas eu sou ateu, além de não crer em Deus, tenha ele a cor que tiver, não gosto de nenhum tipo de papas.
hmbf,
sou cristã, já o disse por aqui; independentementemente disso, interessa-me a crença e a descrença, profissional e humanamente, talvez porque os que me são próximos polarizam ambas as opções. Para mim é um mistério, essa escolha/propensão, e a forma como ela estrutura a personalidade e a acção de cada um. Se na blogosfera (a que conheço, claro)ainda vou conhecendo algum do pensamento religioso, o pensar e o sentir ateu, para lá da dimensão de combate à religião, que lhe é inerente, mas que de todo não a esgota, é invisível. E isto custa-me. Não espero blogues de Bertrands Russels a cada esquina. Mas gostar de ler qualquer coisa do género, gostava.
Abraço,
O tema não me é indiferente: http://antologiadoesquecimento.blogspot.com/2006/09/deus-com-todos.html (não é tudo, mas é um princípio). Uma síntese: Dentro de mim, o conceito que mais se aproxima de uma ideia do sagrado é o conceito de Natureza. Todavia, compreendo na ideia do sagrado uma ilusão, uma lacuna, a grandeza da nossa inocência, talvez, a verborreia dos ociosos, uma referência, um objectivo inatingível, um oriente, mormente uma resposta às nossas limitações e debilidades. Ou, como nos versos de Ruy Belo, «deus é só um nome e só pode criar / se é que o pode um só campo semântico / que deixa dar o nome de divinas / a coisas tão terrestres como o mar». Só a Natureza possui algo que não me custa adjectivar de divino. Se algum Deus existir, então que seja ele a julgar-me - jamais os homens que se arrogam mensageiros da palavra divina, seja lá isso o que for. Se há coisa que odeio é o fanatismo religioso, a manipulação que faz da fé. A fé é um “sentimento” profundo sem o qual nada faz sentido. Tenho fé na natureza, nos seus processos selectivos, nas suas escolhas, no seu curso. Tenho fé na arte, na poesia. De alguma maneira, tenho fé na ciência. O homem quis sempre dominar a Natureza, submetendo-se a Deus como se Deus fosse uma solução para as fraquezas com que a Natureza nos dotou. É tempo de submeter-se à Natureza e de procurar dominar os seus ímpetos divinos. E agora um pouco de Sartre: «O existencialismo não é senão um esforço para tirar todas as consequências duma posição ateia coerente. Tal ateísmo não visa de maneira alguma a mergulhar o homem no desespero. (...) O existencialismo não é de modo algum um ateísmo no sentido de que se esforça por demonstrar que Deus não existe. Ele declara antes: ainda que Deus existisse, em nada se alteraria a questão; esse o nosso ponto de vista.» Vou por aqui. Concluindo: se me perguntarem por que não creio em Deus(es), direi que não creio em Deus(es) tal como não creio em mitos. Não preciso deles senão enquanto fontes de um património imagético com várias disseminações que me interessa aprofundar. Se estou doente, vou ao médico. Se me sinto triste, bebo uns copos. Em nada, na minha vida quotidiana, acreditar em Deus(es) acrescentaria alguma coisa. Na verdade, julgo mesmo que me afastaria do essencial: viver a vida sem pensar nos porquês divinos da desgraça. Acho patética a presunção de que tudo tem um princípio, uma causa primeira. Qual a causa primeira da morte, do sofrimento, da miséria, da desgraça humanas? A ideia de morte obceca-me, no sentido de ser uma ideia constante e permanentemente explícita nos meus actos. Atraem-me muito palavras como a palavra esquecimento. Quanto a prognósticos, far-se-ão no fim. Estendi-me. Peço desculpa, fui indo ao sabor da tecla.
P.S.: Quanto às religiões, considero-as uma praga de que nunca nos livraremos. Mas como prezo muito o ser humano e a sua liberdade, seria incapaz de pôr em causa o direito que cada qual tem a organizar a sua fé à sua maneira. Desde que, em nome da liberdade em que acredito, não procure impô-la aos outros (ou seja, o que as religiões têm feito desde sempre).
Não peças desculpa,Henrique, fiquei muito feliz por poder ler estas tuas reflexões. Obrigado por as teres aqui partilhado.
Entre as questões que tocas, e que o existencialismo toca, uma exprime bem a diferença entre o crente e o descrente: a da (des)necessidade de Deus. Como crente, não me teria ocorrido colocar a questão dessa forma, porque a transcendência, não a concebo em função de mim, da sua potencial utilidade. Decorre, sim, da minha crença nela, uma certa ética, uma certa prática de culto, uma certa pertença.
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