sábado, abril 01, 2006

As descolonizações


Uma animada discussão interna, com interessantes comentários (por exemplo do JPT) tem desalinhado os amigos do povo sobre o tema da descolonização. O Fernando Martins veio impoliticamente colocar a questão de saber se afinal não tinham razão os que argumentavam que as colónias precisavam de mais tempo antes de lhes ser dada a independência. Mais tempo significaria uma descolonização potencialmente mais exemplar. Parece-me um argumento interessante e possivelmente com algo de verdadeiro. Mas que ignora pontos essenciais.

1. A descolonização portuguesa não pode ser analisada isoladamente. O ano decisivo ao pensar a descolonização dos impérios coloniais europeus é 1776 (o início da terrivelmente sangrenta Guerra da Independência dos EUA) não é 1975. Ou, se não se quiser ir tão longe, tem pelo menos de se recuar até ao caso do Suez em 1956, quando uma administração norte-americana de direita, dirigida pelo Nasser, o ditador nacionalista radical do Egipto, como de forma encoberta a minou o mais possível. Foi a partir dessa altura que, Londres primeiro, e Paris a seguir, começaram a planear uma saída apressada de colónias onde perceberam que não poderiam ficar dada a mudança do equilíbrio de forças global. Podia Portugal ter persistido em 1975, naquilo que quinze ou vinte anos antes países mais fortes e ricos tinham concluído ser completamente irrealista? Parece-me no mínimo uma tese questionável. E qual seria o preço dessa opção? Desde logo a nossa entrada na UE estaria fora de questão.

2. Portugal saiu precipitadamente de África? Não. Esteve presente nas costas africanas desde o século XV, e foi o último Estado europeu a sair. No entanto, nesse período não foi capaz, por razões várias, de integrar ou preparar para a independência os estados africanos. Mas se saiu nessa altura foi sobretudo porque todo o sistema internacional, a começar pelos EUA – que se recusou a dar-nos qualquer ajuda militar, e durante anos apoiou activamente de forma encoberta alguns dos movimentos armados independentistas – pressionaram para o fazer.

3. Quem é que ia combater para África em 1974 ou 1975? As tropas destinadas às colónias simplesmente recusavam a embarcar. Havia manifestações nas ruas a gritar «Nem mais uma soldado para as colónias!». Que eu saiba não havia nada do outro lado da barricada. Onde é que estava a direita portuguesa nessa altura? O PSD ou o CDS opuseram-se à descolonização? Não dei por isso. O dispositivo militar estava no limiar do colapso, e foi apenas o profissionalismo de certas unidades que permitiu a Portugal evitar uma vergonha comparável à da Grã-Bretanha na Palestina em 1948 ou no Iémen em 1967 em que teve de antecipar a retirada, em que saiu escorraçada pela força com as suas tropas a morrerem que nem tordos.

4. A quem é que se podia entregar o poder em 1975? O Estado Novo não permitiu a emergência de quaisquer elites locais com experiência de governo (sequer local), ao contrário do que sucedeu no caso da França ou da Grã-Bretanha. Mas mesmo estas potências, e mesmo quando "ganharam a guerra" (veja-se o caso Quénia), acabaram por ter de entregar o poder a grupos nacionalistas radicais. As excepções à regra de persistentes ditaduras foram escassas e tiveram muito a ver com a qualidade da elite local. Foi assim em Cabo Verde, ou na Índia, no Senegal, ou no Botsuana.

5. Por muito que muitas elites de países africanos mereçam críticas por terem prometido o céu assim que os colonialistas saíssem, e depois muitas vezes tivessem entregue o inferno, o fim dos impérios ou a formação de Estados raramente é coisa pacífica. Os EUA, a colónia mais bem sucedida de todas, passaram todo o século XIX mergulhado em guerras sangrentas, invasões de Estados vizinhos e genocídios vários. Na Europa, exactamente quantos séculos e exactamente quantos genocídios e agressões é que foram cometidos desde a Idade Média para se formarem os Estados actuais, até ao bem recente caso da ex-Jugoslávia? Além disso, se eu não sou a favor de se fazer uma imagem idílica do período pré-imperial – a África ou a América antes da presença europeia não eram exactamente o paraíso na terra – a verdade é que os impérios não eram exactamente um jardim de infância. Ou melhor, no máximo e na melhor das hipóteses eram isso mesmo: um mecanismo de menorização insuportável para quais elites locais modernas.

6. Quanto à recorrente preocupação do Fernando com o Mário Soares, fica para o próximo fascículo quando falar dos descolonizadores.