domingo, abril 02, 2006

No funeral de um filho dos outros

Sobre o dr. Mário Soares, meu caro Bruno, fico à espera de ler um texto deslumbrante de deslumbramento sobre as virtudes do pai da pátria. Naquilo que diz respeito a Mário Soares e à descolonização antecipo desde já – opto por ataque preventivo – que gostava que alguém me explicasse porque razão é que um homem, o pai da pátria, que foi tão duramente criticado e ainda não perdoado por muitos daqueles – sobretudo brancos – que saíram de África com “uma mão à frente e outra atrás”, cai tanto nas boas graças da maioria dos portugueses bem pensantes quando se fala na tristemente célebre descolonização “exemplar” (valha a verdade que o próprio Soares já fez saber que alterou o seu juízo histórico de político ao passar a chamar-lhe a descolonização “possível”)?
Os primeiros portugueses a que me refiro são e eram gente humilde que em África comeu o pão que o diabo amassou, às vezes durante várias gerações – para melhorar a sua vida, dos seus filhos e dos seus concidadãos. Muitos deles eram aqueles a quem Rosa Coutinho depreciativamente se referia ao afirmar que não tinham lugar em Angola porque, de tão pouco sofisticados que eram, andavam por lá a roubar postos de trabalho e oportunidades de negócio aos negros. Os primeiros portugueses eram o colonialista taxista, o colonialista lavrador, o colonialista farmacêutico, o colonialista operário, o colonialista funcionário público, o colonialista ferroviário, o colonialista pequeno comerciante e que, como se sabe, acumulou fortunas tão grandes que regressado de Angola, de Moçambique, de São Tomé e Príncipe, da Guiné e de Cabo Verde, só não dispensou os apoios do já saudoso IARNE apenas porque queria chatear a esquerda então no poder. Estes homens e mulheres, estes retornados, não sabiam obviamente nada de África, nem de africanos, nem de descolonizações, nem da descolonização portuguesa a que assistiram, infelizmente, na primeira fila.
Por seu lado, os descolonizadores, civis e militares, que tudo sabiam de África e que sempre disseram que depois de conquistado o poder em Lisboa a transferência de soberania naquele continente ia ser coisa pacífica deixando todos satisfeitos, ao aperceberem-se do alcance das mentiras que tinham espalhado e do vespeiro em que se tinham metido, rapidamente passaram a considerar que as desgraçadas descolonizações de 1974 e 1975 eram da responsabilidade do doutor Salazar falecido em 1970 e do Professor Marcello Caetano exilado no Brasil, além, claro está, dos colonialistas, do colonialismo, dos monopólios, do imperialismo, da Guerra Fria, dos russos, dos americanos, dos comunistas e de muito mais. De todos excepto daqueles que sempre a tendo clamado depois a executaram.
Mas se não bastasse culpar o colonialismo fascista português pelas desgraças de uma descolonização, os próceres desta nunca aceitaram de bom grado os refugiados políticos a que se convencionou chamar retornados. Gente que a esquerda portuguesa durante muito tempo acusou gratuitamente de ter feito vida em África à custa dos “pretos “e que no seu regresso, rapidamente, profundamente ingrata, engrossou as fileiras do CDS e do PPD, quando não da extrema direita, ao perceber, decididamente mal segundo as mentes sábias pró-descolonização, quem os tinha enganado. Enganados por aqueles que sempre tinham dito que o Estado Novo não descolonizava por teimosia e miopia político-ideológica e por causa dos interesses económicos colonialistas. Enganados por aqueles que sempre prometeram que a descolonização não só era fácil como traria paz e prosperidade para todos. Sucedeu que quando se foi o Estado Novo tudo ruiu. Só se fossem cegos é que os retornados não teriam visto que ninguém em Portugal que defendesse a autodeterminação do império português sabia onde é que se estava a meter e a meter, pelo menos, 500 mil colonos brancos a partir do momento em que avançasse para o desmantelamento do império.
Temos aqui, portanto, duas possibilidades. É que ou alguém de facto sabia o que é que acabaria por se passar quando a descolonização se desse e, portanto, é indiscutível que andou durante anos a mentir aos portugueses quando lhes falava das maravilhas da descolonização. Ou então não sabia nada de nada daquele que era um dos problemas mais sérios com que Portugal de deparava na eventualidade de pôr sim ao regime chefiado por Américo Tomás e Marcello Caetano. Mas certamente que o doutor Soares não está nem num grupo nem noutro. E não estando – atenção à ironia – só lhe restava dizer toda a verdade antes escondida pelos descolonizadores portugueses aos seus concidadãos: tudo estava engatado por causa do doutor Salazar e do professor Marcelo, e do fascismo, e do imperialismo… Perante isto eu juro que gostava de saber como é que é possível a alguém, vendo eventualmente uma resma de portugueses e de africanos à beira do precipício, aproximar-se deles e ser tão bondoso ao ponto de lhes dar o empurrãozinho que faltava.
No meio disto tudo, não deixa de ser irónico que aos detentores das grandes fortunas coloniais – para utilizar o vocabulário rasteiro idêntico àquele de que o doutor Soares usou e abusou na última campanha eleitoral, mas também quando penou num triste exílio europeu –, nunca se lhes tenha ouvido uma queixa, uma acusação, que envolvesse directamente o pai da pátria. É que estes além de inteligentes, sábios e modernos, entendedores da bondade e inevitabilidade da descolonização, conseguiram rapidamente que tudo lhes fosse permitido para recuperarem aquilo que tinham deixado em África. Os outros, os ressabiados da descolonização, além de ignorantes, rudes e racistas, nada recuperaram de África porque não era apenas a riqueza que os movia. Era um modo de vida. Uma entrega total àquelas terras – sobretudo a Angola e a Moçambique. E uma vida que, quer queiramos, quer não, não sendo totalmente impossível de recuperar, só eventualmente se consegue a duras penas. Tal como acontece quando se tem que fazer o funeral de um pai ou, sobretudo, de um filho.