O texto do Bruno (continuo sem links porque escrevo em computador da era colonial) tem ainda uma parte mais histórica que merece ser discutida e comentada. Se o fizesse de uma forma muito exaustiva nunca mais saía daqui – e mesmo assim não sei se sairei. Por isso meto-me apenas com alguns factos e a sua interpretação. Desde logo com a ideia de que as descolonizações começaram com a independência dos EUA. Não é verdade mesmo que, retrospectivamente, os anticolonialistas possam ter, e eventualmente bem, do ponto de vista político-ideológico evocado o exemplo dos colonos americanos. O ensinamento dado pelos EUA não só não é útil como atrapalha. Desde logo porque ninguém o viu como acontecimento premonitório do tipo daqueles que ocorreram na África e na Ásia a partir da década de 1940. Se assim fosse, porque razão vários Estados europeus, e depois também os EUA e o Japão, se teriam dado ao trabalho de construir ou alargar os seus impérios coloniais, não apenas ao longo de todo o século XIX mas, sobretudo, depois de terminada a I Guerra Mundial? Convém recordar que o fim da Grande Guerra equivaleu não ao princípio do fim dos impérios coloniais mas ao zénite do colonialismo europeu. O império turco e o império colonial alemão reverteram para franceses, belgas, portugueses e britânicos. Por outro lado, se é verdade que no início do século XIX o Reino Unido apoiou activamente as independências dos impérios português e espanhol na América Central e na América do Sul – acontecimentos que repetiam a experiência das Treze Colónias –, não se absteve de prosseguir o seu programa de expansão imperial na Ásia e em África, ao mesmo tempo que se recusava a deixar partir os territórios que administrava no continente americano – casos do Canadá ou da Jamaica.
Veja-se agora o exemplo da crise do Suez como proclamação da inevitabilidade das descolonizações em África e daquilo que restava da Ásia,. A crise do Suez envolve desde logo muitos temas ligados à política internacional, à história do nacionalismo árabe, à história do Egipto e do Sudão, à questão israelita, à guerra da Argélia, à política interna e à política externa norte-americana, etc., etc. Mas naquilo que respeita à história da descolonização, a crise do Suez não é muito importante. Tinham sido feitas descolonizações em África e na Ásia antes do Suez e continuaram a ser feitas depois do Suez. Do meu ponto de vista, o Suez interessa pouco para esta história. Segundo o Bruno parece que franceses e britânicos terão percebido que a humilhação do Suez os obrigava a retirarem-se rapidamente e em força dos seus impérios. Mas muita historiografia acha que esta interpretação, em tempos muito na moda, assenta em equívocos e em análises baseadas em premissas anacrónicas e superficiais. Por isso ela recorda, por exemplo, que depois do Suez os britânicos arrastaram o mais que puderam a sua presença a leste daquele canal – bem visto pelo Bruno o exemplo do Iémen a que deve juntar Adem, a Federação Árabe do Sul, Malásia e Singapura, já para não falar num ou outro arquipélago no Índico – enquanto que os franceses prolongaram a sua guerra colonial na Argélia até 1961-62, conheceram a queda da V República, um golpe militar e os malabarismos de De Gaulle. Os próprios belgas, após o Suez, continuaram a acreditar que poderiam ficar mais trinta anos no Congo para terem tempo de preparar a independência. O Suez em 1956, como o exemplo do putativo impacto negativo da Segunda Guerra Mundial nos impérios coloniais europeus – acontecimento que teria igualmente tornando inevitável a sua descolonização –, esquece que o Reino Unido saiu daquele conflito com a intenção de aguentar ou até expandir o seu império – mesmo que a independência da Índia fosse, ela sim, praticamente inevitável. Durante a Segunda Guerra Mundial os britânicos viam nos seus aliados norte-americanos anticolonialistas primários – tal como Salazar –, que apenas usavam a retórica anticolonialista para se apossarem das riquezas do seu império levando à independência povos incapazes do autogoverno. Por outro lado, os britânicos ocuparam parte da Alemanha depois de 1945 como se de território colonial se tratasse e ainda pensaram seriamente em absorver, ao menos, parte da Líbia – amputada à Itália derrotada. Finalmente, durante a guerra prepararam programas de recolonização do império, planos esses que em parte aplicaram, sendo que quer na fase de execução como na de elaboração contaram sempre com grande empenhamento dos trabalhistas.
Em 1974 e em 1975 gritava-se nem mais um soldado para as colónias e ninguém queria ir combater para África. É verdade, mas apenas em parte. Desde logo nem todos portugueses gritavam nem mais um militar para as colónias. Depois havia muitos que não querido combater entre 1961 e 1974 e arranjaram mil uma maneiras para não o fazer. E não estou a pensar apenas naqueles que se opunham politicamente ao conflito. Mas a verdade é que depois do 25 de Abril a maioria dos portugueses não gritava coisíssima nenhuma, sobretudo naquilo que à guerra dizia respeito. Além disso muitos daqueles que gritavam faziam-no em estado de alienação semelhante àqueles que entre 1961 e 1974 gritavam vivas à guerra e às províncias ultramarinas instados pela propaganda do regime. Mas em 1974-75, como nos treze anos anteriores, os portugueses mantiveram-se globalmente calados como, aliás, quase sempre. Em 1974-75 quem gritava era a extrema esquerda, desde logo o MRPP que deu início à festa. E embora naqueles dois anos a extrema esquerda tivesse uma expressão social e política forte, a verdade é que era uma minoria e sabia que era uma minoria. Por outro lado, as autoridades, quaisquer que elas fossem, se tivessem agido responsavelmente teriam conseguido enviar tropas para África. Como aliás fizeram. O capital de prestígio que apesar de tudo as Forças Armadas portuguesas conseguiram preservar em África depois de 1974 fez-se independentemente dos gritos ululantes e irresponsáveis de uma certa esquerda.
O CDS e o PPD não fizeram nada? De facto não fizeram nada. Acumularam erros, transigiram, tiveram medo e a certa altura perceberam que independentemente daquilo que achassem ser justo fazer em matéria colonial o essencial era garantir que, enquanto partidos neófitos e mal aceites pelos vencedores da revolução, não fossem extintos. É que depois de Abril de 1974, e durante alguns anos, não havia verdadeira liberdade em Portugal. E não havendo total liberdade não era possível dizer e, eventualmente, tentar fazer valer algumas opiniões dissonantes. Não havia espaço para discussão democrática. Apenas para diatribes revolucionárias. De qualquer modo, duvido que PPD e CDS alguma vez tivessem pensado que valia a pena emolarem-se por causa da descolonização de que a tropa devidamente depurada e a esquerda se ocupavam sem receios nem hesitações.
A quem é que se podia entregar o poder na África portuguesa o poder em 1974 ou 1975? A ninguém… Como não se podia entregar em 1961 ou em 1965. E tal nada tinha que ver com a natureza autoritária do salazarismo. Tinha que ver com o atraso de África, atraso em grande medida provocado pelo início tardio de uma colonização efectiva. Recorde-se que tanto Portugal, como a França, o Reino Unido ou a Bélgica apenas depois de 1945 pensaram e virtualmente iniciaram um processo de forte investimento no desenvolvimento de África, por boas e por más razões. Devia ter sido antes? Devia! Mas como não foi, o resultado só podia ter sido aquele que se conhece. Uma desgraça quase total independentemente do colonizador. Curiosamente entre as excepções estão, sobretudo, aqueles países que apenas tardiamente chegaram à independência. Botswana, Namíbia, África do Sul e, durante algum tempo, a Rodésia do Sul – actual Zimbabwe. Daí que eu defenda que descolonizações tardias teriam evitado muitos problemas aos africanos.
Diz o Bruno, aparentemente, que do ponto de vista militar atingira-se em 1974 uma situação muito difícil nas colónias portuguesas. Não é verdade. Nem sequer para a Guiné.
Diz também que era irrealista continuar em África. Se era irrealista continuar porque razão as principais potências mundiais assim o consideravam, então porque motivo Portugal nunca teve grandes dificuldades em captar investimento estrangeiro – francês, japonês, belga, alemão, norte-americano ou britânico – para o desenvolvimento de Angola e Moçambique? Não só as economias destes territórios continuavam a crescer muitíssimo em 1973, como ninguém internacionalmente considerava que a debandada e a independência fossem para amanhã. Os EUA apoiavam os movimentos de libertação das colónias portugueses? Muito modestamente. Em 1974, e do ponto vista internacional, ninguém ligava a África. Curiosamente, com a saída de Portugal, voltou estar no centro das atenções. Paralelamente, entre 1961 e 1974, muitos países não deixaram de continuar, retomar ou iniciar a venda de armas a Portugal – muitas vezes por trás do pano. Nunca foi por falta de armamento que Portugal conheceu dificuldades em África. Não tudo aquilo que desejava e de que precisava, mas tinha o suficiente.
Dizer que Portugal esteve em África desde o século XV, e algumas potências europeias desde o século XVI, e que apesar disso nada se fez para preparar a descolonização não me parece um bom argumento. Até ao final do século XIX, e por razões várias, a presença europeia e portuguesa em África era superficial ou meramente formal – note-se que as Américas foram colonizadas desde o século XVI e a África não, fundamentalmente por razões geográficas e biológicas. Os europeus encontravam-se impedidos de penetrar em África dado o seu clima doentio, com excepção da África mediterrânica e de alguns territórios hoje pertencentes à África do Sul.. Note-se, por exemplo, que a disposição geográfica da América do Norte é “horizontal” com rios que facilitam a penetração para o interior em todo continente. Em África não é assim. Por outro lado, e não apenas porque se estava não se estando, seria impossível começar no século XVI ou XVII a pensar preparar elites africanas para uma futura independência. As referências políticas, culturais e ideológicas eram então muito diferentes daquelas que vingaram na segunda metade do século XX. Por boas ou por más razões ninguém pensava em preparar independências. A começar pelos republicanos portugueses, pais políticos de uma boa parte da esquerda anticolonialista portuguesa. Acabando nos britânicos que, entre 1899 e 1902, fizeram na África do Sul uma guerra para, por fim, colonizarem os brancos que lá estavam desde o século XVII.
Qual teria sido o preço de tomar a decisão de continuar em África depois de 1974? Elevadíssimo! Mais elevado do que a decisão de sair? Não sei! O que me parece evidente é que depois de Abril de 1974 se tomou a decisão mais fácil. E as decisões mais fáceis não costumam ser nem as mais corajosas, nem as mais acertadas! Difícil era ficar! Corajoso era lutar! Os portugueses não estiveram para isso? Os africanos que se danassem! Eles ficaram com a fome, com a peste e com a guerra. Nós com a paz, a prosperidade económica e a democracia. Nem uma pestezinha para amostra!
1 Comments:
Bravo! Concordo inteiramente.
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