sexta-feira, fevereiro 13, 2009

A arte, entre a ideologia e a ciência

Valkíria e Milk são dois filmes demasiado diferentes para fazer comparações. Ambos têm em comum casos reais, filmados em estilo documental, e um trabalho de reconstituição de época bem sucedido (especialmente no caso de Milk). Mas o carácter extremo da situação narrada em Valkíria e o caso limite de Harvey Milk são demasiado diferentes para forçar aproximações. Dois bons filmes, mas em comum só o espectador.
No caso de Valkiria, reconstituição bastante fiel do plano para matar Hitler que mais perto esteve de ser bem sucedido, além de uma compreensível poupança nos detalhes cruéis da repressão dos conspiradores (incluindo seus familiares), o conjunto de bons actores (mesmo Tom Cruise não destoa muito como oficial alemão mutilado) e de realização segura dá ao filme uma aproximação ao ambiente decadente do final do III Reich (longe, ainda assim, de A Queda). E o espectador fica com uma imagem clara e expressiva dos dilemas morais e práticos com que só os que lidam com a morte lidam de forma habitual.
Milk, história edificante além de real, dá uma interpretação magnífica de Sean Penn e um conjunto de conotações com a história recente, actual, dos EUA. Também aqui a morte, no caso do activista e político gay algo de excessivo e inopinado, marca toda a narrativa (com alguns saltos na edição que omitem o lado menos visionável do activismo do protagonista). Para o espectador, é algo ainda assim mais próximo do que o horror distante do nazismo. A intolerância baseada no preconceito ainda é próxima de todos nós, a aleatoriedade de uma morte violenta às mãos de um qualquer (des)conhecido não poupa, ao menos como hipótese, nenhum de nós.A positividade do combate pelo bem é menos ambígua, menos frágil e menos remota do que em Valkíria, como todo o ambiente da acção.
O significativo é como a representação do mal nestes filmes é sempre extrema. A morte de inocentes, promovida de forma selvática, na base de uma intolerência que se quer intratável. (Não se trata de equivalência moral entre a Alemanha dos anos ’40 e os EUA dos anos ’70, claro.) O mal diário, esse, fica de fora ou, pelo menos em segundo plano. A perseguição no emprego, bem mais perversa que a provação de acesso ao trabalho (ao contrário do que supõem os teóricos da igualdade de oportunidades em versão meritocrática), apenas lateralmente surge. A pressão para a habituação face à injustiça manifesta surge quase sempre como parte do cenário. Enfim, aqueles aspectos da experiência limite que mais nos são familiares ficam obscurecidos com a exposição do mal mais radical. O que é um pouco limitativo para a aposta documentarista dos dois filmes e, em rigor, lhe confere um traço de ficção (que não o é).
Talvez esses aspectos sobressaiam em Dúvida, que parece ser uma daquelas histórias tão comuns na vida diária, sob muitas formas. Para os que pensam que em Portugal é difícil despedir, como se não bastasse deixar de cumprir os compromissos, deve ser esclarecedor. O mal dos espectadores será pouca coisa se comparado com o hitleriano ou o fundamentalista religioso, mas merece também atenção, documental ou não.

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2 Comments:

Anonymous Anónimo disse...

Existe um filme alemão excelente que retrata "esse mal diário", esse medo que se impregna por todos os poros da nossa pele 24 horas por dia. Falo deste filme (http://www.imdb.com/title/tt0426578/), que trata das actividades e condenação dos elementos (Sophie Scholl, Hans Scholl e Christoph Probst) que constituíam o movimento de resistência anti-nazi Rosa Branca.

10:31 da tarde  
Blogger CLeone disse...

Obrigado, este não vi mas talvez ainda o apanhe em DVD.
O mal diário de que falava o meu post, no entanto, é bem menos remoto...

2:16 da tarde  

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