Sob o véu, a controvérsia
António Figueira começa por elogiar o princípio de separação entre Estado e Igreja de origem francesa que «genérica e simplificadamente, remete a questão para o foro individual e afirma o carácter não-confessional do Estado». Eu subscrevo a segunda parte deste princípio – o carácter não-confessional do Estado – sabendo por antecipação que outra pessoa deste blogue vai argumentar que essa não é a única via possível para o pluralismo religioso. Um Estado não-confessional encontra-se em excelentes condições para garantir o exercício pelos seus cidadãos do direito de pertencerem ou não a qualquer confissão religiosa. A primeira parte deste princípio – remissão da questão religiosa para o foro individual – é mais perigosa do que parece. Implicitamente, o Estado outorga-se o direito de dizer a uma religião o que deve ser. Ora o Estado, não sendo confessional, não pode criticar uma religião por ser «demasiado ritualista» ou por não incentivar a «interpretação livre das escrituras»; por ser «demasiado católica» e «insuficientemente protestante»; por ser «demasiado emocional» e «pouco racional». A comunidade de crentes é que faz de uma religião aquilo que ela é, e qualquer sociólogo das religiões sublinha que a crença religiosa é geradora de sociabilidades. Para quem acha estas considerações muito abstractas, basta lembrar que a I República portuguesa, em nome do princípio invocado, proibiu a realização de procissões.
O segundo ponto de António Figueira merecia figurar numa antologia de preconceito anti-religioso. Vejamos: «Eu tenho as maiores dúvidas de que as jovens liceais muçulmanas de França, que pedem para andar de cabeça coberta para não excitar a concupiscência dos rapazes, exprimam a sinceridade daquilo que pensam». Mas está convencido da sinceridade das mulheres de origem muçulmana que são favoráveis à proibição do uso do véu na escola para fugir a imposições familiares.
Este ano, conheci uma muçulmana de vinte anos que se encontrava em Madrid a fazer um estágio profissional. Sendo de origem marroquina, sempre se sentiu estrangeira em França e em Marrocos e descobriu, com prazer, que em Espanha a tratavam como pessoa. Convém sublinhar que ela vivia em França desde os quatro anos mas, tal como os pais ou os irmãos, não possuía qualquer direito cívico, incluindo o de votar nas eleições municipais. Esta muçulmana, que ficou entusiasmada pela oportunidade de tirar fotografias com o telemóvel a Pedro Almodôvar, o qual acabara de lançar o seu último filme, não usava véu. Porque ainda não se considerava «digna» de usá-lo e não queria desrespeitá-lo como algumas marroquinas que usavam o véu e passavam a vida a ir para a cama com uns e outros. Espero que esta história esclareça algumas dúvidas a António Figueira e lhe crie outras: será que uma cabeça coberta não pode «excitar a concupiscência dos rapazes»? Qual a relação desta possibilidade com uma frase de Buñuel: «um erotismo sem catolicismo é um erotismo incompleto?»
Eu concordo com a conclusão de AF deste ponto: «Eu só defendo o direito à diferença se este incluir também o direito a ser diferente da diferença; o contrário disso, traduz-se na prática reaccionária e iliberal de atribuir a cada um ou a cada uma o papel que a tradição lhes destinava, fechando-os (as) num tipo social que não escolheram». Mas a história que contei é acerca de uma muçulmana que quer, sinceramente, usar o véu e, ao mesmo tempo, ter o direito de voto em França e não ser discriminada no acesso ao mercado de trabalho. Ela não quer ser como as suas avós nem renegá-las, quer integrar-se numa sociedade diferente mantendo-se fiel a determinados valores e tradições, quer criar o seu «tipo social». É nestas pessoas que se deve pensar, antes de mais, quando se fala de integração muçulmana na Europa.
No último ponto, AF afirma: «Quem não pretende a integração, segrega e a forma moderna de segregação é o multiculturalismo que em nome da diferença defende a co-existência dos grupos étnicos em vez da sua integração». O multiculturalismo pode ser uma forma – condenável – de segregação. Mas outras existem e não são denunciadas: nomeadamente a privação de direitos cívicos de emigrantes muçulmanos há décadas a viver em Franca. Além disso, esta mistura entre «religião» e «grupos étnicos» ilude que, nas sociedades modernas, a religião pode ser e muitas vezes é uma opção individual. Podia citar o caso do francês Roger Garaudy que se converteu ao islamismo. Mas para os adolescentes filhos de emigrantes muçulmanos, com problemas de adaptação a uma sociedade estranha, a religião pode funcionar como resposta aos seus problemas identitários. O perigo fundamentalista espreita justamente numa desvinculação entre fé e tradição.
Por fim, devo afirmar que, embora não concorde com António Figueira e pense que o seu ponto de vista é distorcido por preconceitos, acho a questão demasiado complexa para ficar pela manifestação da discordância. Não considero questões de somenos saber de que tipo de véu ou de que espaço público estamos a falar. Penso que faz sentido distinguir entre véus que cobrem apenas a cabeça ou véus cobrindo todo o corpo. Não creio que deva ser permitido, por exemplo, a uma juíza usar qualquer tipo de véu, ou outro símbolo de pertença confessional, no exercício das suas funções. A discussão ainda agora começou.
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