Ontem morreu John Kenneth Galbraith (1908-2006). Dos gigantes do liberalismo americano de esquerda da segunda metade do século XX já só está vivo, e também nos seus noventas, Arthur Schlesinger Jr., depois das mortes recentes de George Kennan e agora de Galbraith. Sem querer ser demagógico sou obrigado a notar que o mínimo que se pode dizer é que ser liberal de esquerda parece garantir uma vida longa (Kennan morreu com 101 anos!).
Galbraith - um liberal provavelmente até mais à esquerda do que eu - mostra algumas coisas essenciais: que é perfeitamente possível ser-se liberal e de esquerda (sem querer ser muito repetitivo); que o homo oeconomicus é não só um mito, mas frequentemente uma barreira à compreensão dos reais mecanismos económicos; que as grandes empresas são potencialmente tão disfuncionais como os grandes Estados (todos sabemos isso na prática, mas as escolas económicas dominantes têm algumas dificuldades em encaixar essa realidade); qual o real sentido da sustentabilidade económica (envolve nomeadamente custos ambientais); e, last but not least, que a economia é demasiado importante e complexa para dar azo a respostas simples, ou para ser deixada aos economistas (ou pelo menos ao consenso dominante entre os economistas numa determinada altura).
Como Galbraith gostava de dizer (com algum exagero): "a função das previsões económicas é dar à astrologia uma aura de respeitabilidade."
(Ele próprio reconheceu, mais tarde que não tinha sido completamente inocente nos seus textos desta tentação determinista e divinatória dos economistas. O perigo, claro, é confundir tendências com certezas.)
Aos obituários da praxe, alguns listados em baixo, acrescentava apenas um dado curioso relacionado com Portugal. Tal como Kennan e Schlesinger, ele foi um conselheiro próximo do presidente Kennedy. Nomeado embaixador na Índia, foi um grande defensor (contra o parecer de Kennan, diga-se, mais pragmático) de uma oposição aberta dos EUA ao colonialismo do Portugal de Salazar. Para ele era claro que a Índia era o futuro e o Império Português o passado.
A LER (sff): Os obituários no New York Times e no Washington Post, e esta análise muito sintética da sua obra na BBC. Em português, é bonita a homenagem do AAA no Insurgente, apesar das discordâncias; um exemplo de como cada um na sua área sabe reconhecer a qualidade do trabalho alheio independentemente das concordâncias ou discordâncias quanto ao conteúdo. A obra é (já se sabe) imortal, e quem quiser um texto de Galbraith, curto, barato e altamente pertinente para este tempos pós-Enron, pode ficar-se por The Economics of Innocent Fraud. Finalmente, esta entrevista dá uma panorâmica, nas palavras do próprio, da vida e das ideias.
6 Comments:
Discordo em absoluto da "grandeza" intelectual deste senhor. E acrescento que "liberal" nos E.U.A. é sinónimo de "radical" (no sentido que a palavra tinha no século XIX), distinto de liberal clássico.
May he rest in peace! E concordo com o comentário do Luís. Intelectualmente o homem não era grande coisa. Dele só li, além de alguma correspondência diplomática enviada da Índia para os EUA, durante a Administração Kennedy, o livrinho sobre o crash bolsista de 1929 - já lá vão uns vinte anos. Bom livro para começar, mas longe de estar entre os melhores sobre o tema - e posso garantir, sob minha paravra de honra, que já li vários. Parece-me, no entantom que Galbraith, enquanto economista, foi mais um mito do que uma realidade. Na América encontram-se uns quantos bem melhores do que o professor Galbraith.
Luis por muito que considere a tua opiniao sobre o liberalismo, ela e apenas isso uma opiniao. O Galbraith definia-se como liberal, e era assim visto por outros. Nos EUA liberal significa varias esquerdas e, ate, por vezes radicais, mas nisso eles sao ate mais fieis ao sentido do termo na Europa do seculo XIX (revolucoes liberais, alguem se lembra?).
Quanto a Galbraith, estava mais a esquerda que Schlesinger e Kennan, mas qualquer deles destacou-se como apoiante de Roosevelt, de Truman, de Kennedy, ou seja, de um liberalismo de esquerda, reformista, mas anti-comunista.
O seu significado para o pensamento economico contemporaneo nao depende tambem, caro Luis e Fernando, da vossa opiniao. Ele teve uma influencia enorme. E esta a ter uma influencia renovada com crescendo de uma abordagem sociologica aplicada a economia, a gestao, as relacoes internacionais(teoria das organizacoes ou o institucionalismo constructivista). Isto para nem falar na ideia da economia sustentavel em termos ecologicos (alguem olhou para o preco do petroleo ultimamente?).
Imagino que temos de concordar em continuar a discordar. Mas e pena que nem a leitura do AAA os convenca das qualidades intelectuais do senhor.
Mas o que é que o preço do petróleo actual tem que ver com uma "economia sustentável em termos ecológicos"?
Caro Bruno, parabéns pelo obituário, à boa maneira britânica. Pergunto-me apenas em que medida o obituarista concorda com a crítica do obituado relativamente ao papel dos economistas... Sendo eu um economista "especializado em previsões", por assim dizer, posso garantir-lhe que se os decisores políticos as levarem a sério, isso implica, em grande parte dos casos, que estas irão falhar rotundamente. O Luis Aguiar-Conraria (http://aguiar-conraria.weblog.com.pt/) discutiu esta paradoxal "maldição dos economistas" não há muito tempo.
Obrigado Vasco. E muito interessante a questao. Parece-me que o grande problema e que, embora a economia (como a demografia ou a sociologia eleitoral) seja das areas mais quantificaveis das ciencias humanas, o problema fundamental (bem mais do que nas ciencias fisicas) e o da interaccao entre estrutura ou capacidades materiais, por um lado, e decisoes individuais frequentes vezes condicionadas por percepcoes da realidade que nao sao neutras.
Acho o Galbraith interessantemente exagerado e deliberadamente provocador em muitos aspectos (tambem por arriscar tanto se petisca muito). Neste caso, claro que as previsoes economicas tem algum interesse como identificacao de tendencias, o que nao faz sentido e fazer delas uma certeza. Quem as produz (como voce) sabe que as estatisticas estao longe de ser objectivas, implicam sempre (algumas) escolhas. (Veja-se, por exemplo, a discussao recente por Paul Krugman das diferentes estatisticas prevendo uma crise da seguranca social nos EUA).
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