quarta-feira, outubro 29, 2008

Pequena história de um centro periférico

José Cardoso Pires (1925-1998) nasceu numa aldeia do centro de Portugal. Um centro literal que ele descrevia a norte, tão longe o tinha. Desse calcanhar do mundo*, duro tanto quanto periférico, não guardou boa memória. Carregou o Peso natal como coisa imprecisa e indesejada, lembrança de várias pobrezas - sempre o disse sem meias palavras. Meias, inteiras, quem pense que nem as de um escritor duram bem se pode desenganar: a memória das dele marcou muito os que de lá tiraram outras melhores. Chegado o dia de dar nome à biblioteca do concelho, e avançado o do autor no rescaldo de um colóquio sobre a sua obra, discutiu-se como se não discutia há muito. Meses e meses de artigos em jornais regionais, conversas entusiasmadas, desabafos tasqueiros, abaixo-assinados. Como dizem os vilarregenses, uma deceinação: afrontaram-se uns, confrontaram-se outros, enfrentaram-se a si mesmos os que a tanto se dispuseram.
Domingo passado inaugurou-se o novo edifício, homónimo e depositário de algumas das obras que guarneceram a vida ao autor. Julgo que nenhum dos discursos proferidos omitiu nem arredondou os cantos à sua perspectiva, nem à polémica, ainda viva, em torno da homenagem a esse filho da terra que amou outras que não a de origem.
Se soar optimista, paciência - leio nisto um Portugal um bocado mais franco, menos ressentido consigo mesmo.
O que há num nome? Tanta coisa.

[Fotos: entrada da Biblioteca Municipal José Cardoso Pires; pormenor do espólio bibliográfico do escritor, doado pela família]

* Expressão e título de um dos romances de Vergílio Godinho (1902-1987), escritor e advogado natural de Ferreira do Zêzere , mais tarde habitante da Fundada, em Vila de Rei. Prémio Ricardo Malheiros em 1942.

2 Comments:

Anonymous Anónimo disse...

O debate vilarregense acerca do nome da biblioteca local foi apenas fruto de algumas mentes, a meu ver azedas e sem abertura de espírito, e que, ao mesmo tempo que foi fortemente encenada, foi também enormemente engrandecida pelos seus intervenientes.
Na verdade a discussão não foi tão abrangente quanto isso, pois os verdadeiros vilarregenses não estão muito preocupados com o nome do novo mamarracho de betão do sítio... Logo, a coisa não foi assim tão "vilarregense" quanto se pensa.

A meu ver (e eu sou vilarregense), seria de louvar que os meus conterrâneos soubessem nas palavras e opiniões de José Cardoso Pires concluir muito sobre si próprios.

Eu já o fiz e não me arrependo.

6:35 da tarde  
Blogger Cláudia [ACV] disse...

Caro Miguel Dias,
a minha percepção (a de quem, não vivendo em Vila de Rei, tem lá as suas origens e lá vai com frequência) parece então diferir da sua: a minha é a de que o debate não foi tão acantonado/particularizado assim.

Não sei quem considera serem "os verdadeiros vilarregenses", mas eu falei com umas boas dezenas de pessoas a este respeito, de várias condições e pontos do concelho, e outras tantas a viver fora dele mas dele originárias, e quase todas tinham uma opinião sobre a matéria, fossem a favor ou contra.
Esse facto em si mesmo, o da aberta discussão sobre quem evocar na biblioteca local (que, já agora, nos divide numa outra questão: a obra traçada pelo arquitecto Abílio Junqueira, na minha opinião, é não um "mamarracho de betão", mas sim o único edifício contemporâneo condigno da vila, distante dos cansativos exemplos de estilo "falso tradicional português" que lá se podem ver; da desastrosa obra resultante da alteração dos singelos mas bonitos antigos paços do concelho; ou ainda da actual câmara, simplesmente feia) mais que a forma que a dita discussão ganhou, me pareceu o mais positivo, numa zona onde com tanta frequência (em matérias de interesse colectivo um pouco menos imediatas) vence largamente a apatia.

Quanto à opinião de José Cardoso Pires (um nome que, caso não tenha deixado claro, julgo merecer a memória e o respeito da sua terra de origem pelo grande escritor que foi) ela tem de ser encarada frontalmente, sim, e sem exacerbamentos nem traumas, já que ela foi isso mesmo, uma opinião, que tem de ser indispensavelmente matizada, ainda que não desmerecida: as suas palavras (essas mesmo da terra de "padres, pedras, pinheiros e polícias", ou da "sicília abandonada") nascem, ao que pude saber pelas entrevistas que deu (a Assis Pacheco, em '81, e a Portela, em '90 ou '91, por exemplo), sobretudo da sua memória de infância e das suas experiências em meio familiar, mais que do seu conhecimento profundo do lugar e das gentes. O mundo serrano da Beira Baixa não era o seu mundo, por opção e mundividência. Se se deseja aceder literariamente a esse mundo, leia-se o referido Vergílio Godinho, o único contista e romancista que, na medida das suas qualidades, se debruçou verdadeiramente sobre aquelas pessoas e paragens.

Cumprimentos,
acv

11:05 da tarde  

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