O efeito de cansaço é normal: mais uma crise, mais uma vez no Médio Oriente? O que é que isto nos interessa? Convém lembrar que além de alimentar as guerrilhas ideológicas primárias entre “amigos de Israel” e “amigos dos palestinianos” em Portugal (que realmente não interessam nada), este conflito entre o Hamas e o Hizballah fez subir, de novo, o preço do petróleo e ameaça portanto directamente o nosso frágil crescimento económico.
A crise é, como sempre, complicada. Mas simplifiquemos um pouco. A ala moderada do Hamas (Movimento de Resistência Islâmica) parecia estar à beira de aceitar uma proposta do presidente palestino Abbas para se aproximar do reconhecimento de Israel. A ala militar mais radical da Hamas rapta um soldado israelita e usa-o para recordar a sua força e a situação dos prisioneiros palestinianos em Israel. O governo de Israel, o mais civilista e moderado dos últimos tempos vê-se obrigado a mostrar-se duro. Sobretudo depois do Hizballah (Partido de Deus) ter feito subir a parada ao abrir uma segunda frente libanesa, raptando também soldados israelitas. Quem recorda a Israel as virtudes do diálogo, quem demoniza o Hamas e o Hizballah não percebe algo de fundamental nesta crise: as disputas entre moderados e duros no seio destas organizações.
Estes raptos de soldados exigiram uma longa preparação e ocorrerem nesta altura não é um improviso, nem é politicamente neutro. As alas mais duras do Hamas e do Hezballah movimentos afirmam-se assim como campeões da causa palestina e mostram que o unilateralismo da paz imposta israelita tem custos num conflito que continua a ter uma importante dimensão regional. Servem também os propósitos da Síria e do Irão, ao mostrar a sua capacidade de criar confusão na região. (
O Daniel Oliveira, directamente de Damasco, fala da popularidade do Hizballah na capital síria. Seja adesão sincera, ou ecos da propaganda oficial, ou provavelmente ambas as coisas – algo que estrangeiros de passagem terão dificuldade em distinguir – não é por acaso. Uma operação deste tipo nunca seria realizada sem a aprovação de Damasco e de Teerão).
Israel tem o direito de auto-defesa? Tem. Mas o direito de auto-defesa nunca é, por definição, absoluto. Ele implica necessariamente uma resposta proporcional. Ninguém pode reagir como lhe apetece porque foi atacado. No entanto, é difícil argumentar que algum governo israelita pudesse ter reagido de forma diferente no contexto actual.
Já a tese de Israel ameaçado na sua sobrevivência é, no mínimo, altamente improvável. Israel é um país pequeno numa zona de tensões e riscos, mas tem dos exércitos mais bem treinados e equipados do mundo. Sobretudo, Israel é já, ao contrário do Irão, uma potência nuclear com mais de cem ogivas: ou seja, tem a capacidade de literalmente destruir qualquer país da região. E tem a protecção dos EUA.
Igualmente sem sentido é a ideia de que a União Europeia é sistematicamente hostil a Israel, defendida, mais uma vez, por JPP (em texto no Público, publicado no seu blogue). Se a UE o fosse realmente podia paralisar com facilidade a economia israelita que é totalmente dependente das trocas com a Europa, e teria até alguma legitimidade para o fazer visto que o acordo comercial incluiu um compromisso explícito de Israel com o processo de paz. Claro que o que ninguém consegue fazer é competir com os delírios supostamente pró-israelistas de Washington, aliás muito negativos para os reais interesses de Israel (
algo que JPP até reconhece.)
Por outro lado, os palestinianos também têm o direito – reconhecido na carta da ONU – de resistir à ocupação estrangeira atacando alvos militares. E o Hizballah reclama para o Líbano uma parcela de território que Israel retém (com o argumento de que a ser de alguém é da Síria) e responde aos bombardeamentos israelistas com o tipo de armamento que tem disponível. Tudo isto mostra como a segurança de Israel é frágil na ausência de uma paz geral (que seja difícil ninguém discute). Ou seja, se começarmos a discutir legitimidades dificilmente chegamos a algum lado.
Isto não é uma guerra, embora possa parecer. Basta comparar-se a situação com a invasão de 1982, e notar-se-á a substancial diferença. Trata-se de
coerção estratégica. Israel procura paralisar o Líbano, para coagir a população não-xiita e os demais partidos libaneses, assim como a comunidade internacional interessada em estabilizar o País do Cedro e em deter o fluxo de refugiados, a pressionar o Hizballah.
A ideia de que se pretende destruir o Hizballah é uma miragem propagandística. A sua popularidade – por boas e más razões – entre a população xiita libanesa, a sua organização celular, e os seus apoios externos tornam isso impossível, mesmo que o seu líder fosse morto. Aliás o movimento é filho da invasão israelita do Líbano em 1982, pelo que certamente não será destruído por bombardeamentos localizados. Mais realista é o objectivo reduzir alguma coisa o potencial militar da Hizbullah. Mas para o fazer substancialmente seria necessário invadir. No entanto, isso seria o sinal de que este exercício de coerção estratégica estaria a falhar e poria os soldados israelitas em risco.
Uma solução política, ao contrário do que os “falcões de sofá” fazem crer, é a saída de longe mais provável e desejável da crise, sobretudo se se tratar de recuperar os soldados israelitas com vida. Israel desejaria ainda, idealmente, aproveitar para criar uma barreira entre a Hizballah e a sua fronteira norte. Nesse aspecto uma força internacional transitória, depois substituída pelo exército libanês, poderia ser um resultado muito importante desta crise. Mas, quer isso aconteça, quer não, e se o passado serve de guia, Israel vai sempre acabar por libertar alguns prisioneiros em troca dos soldados – afinal, já o fez em troca de cadáveres. Desde que haja algumas garantias de que a Hizballah e o Hamas não voltarão a repetir a brincadeira nos próximos tempos. (Aliás, o exército israelita estará certamente a estudar e corrigir os erros que permitiram este desastre.)
Um jogo de xadrez, em suma, mas mortífero e perigoso. Seria estranho que este governo israelita se deixasse cair na armadilha de uma escalada sem fim. E o Hizballah, embora seja um dos pioneiros dos ataques terroristas suicidas, está longe de ser uma organização suicida. O Hamas está no poder na Palestina. Mesmo o Irão e a Síria terão interesse, para mostrar o alcance da sua influência, e para evitar um crescendo da pressão internacional e regional sobre os seus regimes, em eventualmente conter a crise. Mas se há algo previsível no Médio Oriente é a sua imprevisibilidade. E se um soldado israelita é morto? E se um foguete ou uma bomba mata demasiado civis? E se Israel realmente elimina algum líder do Hizballah? Teremos de esperar para ver. Esperando que o petróleo não suba mais, e que os custos em vidas inocentes não cresçam.
7 Comments:
Excelente análise, muito equilibrada. Apenas dois reparos, por assim dizer:
1- A escalada do preço do petróleo, quer hoje quer de há muitos meses para cá, está muitíssimo mais ligada a especulação dos "brokers" petrolíferos nos chamados mercados de futuros do que a esta(e outras) crises regionais. Se a lógica fosse realmente crise=preços astronómicos, há muito que a situaçao no Iraque(um verdadeiro exportador de petróleo) teria feito os preços disparar acima dos 100 dolares/barril.
2 - Em que te fundamentas para afirmar isto: "O governo de Israel, o mais civilista e moderado dos últimos tempos"? No poder desde Março deste ano, Olmert, Peretz, Livni e companhia têm torpedeado(and literally speaking) qualquer perspectiva de paz regional. Será pelo facto de serem líderes civis (Peretz sendo até ex-sindicalista de esquerda filo-comunista) que o afirmas? Nada no comportamento deste governo justifica o epíteto "moderado" que lhes atribuiste.
Aliás, a insane operaçao israelita no Líbano augura muito pouco de bom no que diz respeito ao futuro das relações Israel-Irão. Se a guerra no Líbano náo passar de uma "war by proxies", uma espécie de ensaio geral, poderemos ter o caldo bem entornado.
tiago
Acho que aprendi qualquer coisa com este post. Isso é bom. No entanto, fica uma dúvida: se é «altamente improvável» «a tese de Israel ameaçado na sua sobrevivência», como justificar a reacção? O Bruno diz que «é difícil argumentar que algum governo israelita pudesse ter reagido de forma diferente no contexto actual». Ora, não serão precisamente reacções destas o que garante a improbabilidade da putativa ameaça?
Obrigado pelos pertinentes comentários.
Quanto ao petróleo, claro que esta crise só tem o impacto indirecto. Creio que se explica num contexto em que existe um crescimento continuado da procura e uma falta de elasticidade na oferta, que é para mais vulnerável a crises políticas em várias áreas chave (da Venezuela ao Iraque), que será, admito que sim, explorada e agravada por especuladores.
O governo israelita não é "comandado" por um general, e tem ministros civis na maior parte das pastas chaves, inclusive a da defesa. Ele surgiu da convergência de um Partido Trabalhista que tinha no seu programa eleitoral uma política da paz negociada, mas ficou sem interlocutor; e do Khadima, uma dissidência do Likud precisamente em nome de uma política (ainda que unilateral e parcial) de retirada da Cisjordânia. Mesmo que se conteste estas opções, em relação ao passado recente parece-me evidente que são mais moderadas, menos assentes em soluções militares.
O grande problema é que os moderados no Médio Oriente têm estado sempre à mercê dos radicais, porque se não respondem em força a provocações, estão a cometer suicídio político. É por isso que qualquer governo israelita teria respondido (pelo menos) assim.
Mas também porque a maior capacidade de acção militar da Hizballah e do Hamas cria um problema real de segurança, mesmo que não seja uma questão de vida ou de morte para Israel. Se fosse, a resposta seria bem menos limitada.
Excelente post. Obrigado.
sobre este tema gostaria de recomendar o seguinte livro:
Israel and Palestine: Why They Fight and Can They Stop?
by Bernard Wasserstein
http://www.amazon.co.uk/gp/product/1861975589/202-1809321-0555864?v=glance&n=266239&s=gateway&v=glance
Óptimo post,e também óptima a análise da situação, muito mais completa do que algumas reacções incendiadas que vemos por aí, de parte a parte.
Belíssimo post, um dos mais ponderados e paradoxalmente simples que li ultimamente, quando todo mundo fica meio assustado em tocar no assunto pela sua complexidade.
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