sexta-feira, julho 21, 2006

A Oriente: Crise de Novo

O efeito de cansaço é normal: mais uma crise, mais uma vez no Médio Oriente? O que é que isto nos interessa? Convém lembrar que além de alimentar as guerrilhas ideológicas primárias entre “amigos de Israel” e “amigos dos palestinianos” em Portugal (que realmente não interessam nada), este conflito entre o Hamas e o Hizballah fez subir, de novo, o preço do petróleo e ameaça portanto directamente o nosso frágil crescimento económico.
A crise é, como sempre, complicada. Mas simplifiquemos um pouco. A ala moderada do Hamas (Movimento de Resistência Islâmica) parecia estar à beira de aceitar uma proposta do presidente palestino Abbas para se aproximar do reconhecimento de Israel. A ala militar mais radical da Hamas rapta um soldado israelita e usa-o para recordar a sua força e a situação dos prisioneiros palestinianos em Israel. O governo de Israel, o mais civilista e moderado dos últimos tempos vê-se obrigado a mostrar-se duro. Sobretudo depois do Hizballah (Partido de Deus) ter feito subir a parada ao abrir uma segunda frente libanesa, raptando também soldados israelitas. Quem recorda a Israel as virtudes do diálogo, quem demoniza o Hamas e o Hizballah não percebe algo de fundamental nesta crise: as disputas entre moderados e duros no seio destas organizações.

Estes raptos de soldados exigiram uma longa preparação e ocorrerem nesta altura não é um improviso, nem é politicamente neutro. As alas mais duras do Hamas e do Hezballah movimentos afirmam-se assim como campeões da causa palestina e mostram que o unilateralismo da paz imposta israelita tem custos num conflito que continua a ter uma importante dimensão regional. Servem também os propósitos da Síria e do Irão, ao mostrar a sua capacidade de criar confusão na região. (O Daniel Oliveira, directamente de Damasco, fala da popularidade do Hizballah na capital síria. Seja adesão sincera, ou ecos da propaganda oficial, ou provavelmente ambas as coisas – algo que estrangeiros de passagem terão dificuldade em distinguir – não é por acaso. Uma operação deste tipo nunca seria realizada sem a aprovação de Damasco e de Teerão).
Israel tem o direito de auto-defesa? Tem. Mas o direito de auto-defesa nunca é, por definição, absoluto. Ele implica necessariamente uma resposta proporcional. Ninguém pode reagir como lhe apetece porque foi atacado. No entanto, é difícil argumentar que algum governo israelita pudesse ter reagido de forma diferente no contexto actual.
Já a tese de Israel ameaçado na sua sobrevivência é, no mínimo, altamente improvável. Israel é um país pequeno numa zona de tensões e riscos, mas tem dos exércitos mais bem treinados e equipados do mundo. Sobretudo, Israel é já, ao contrário do Irão, uma potência nuclear com mais de cem ogivas: ou seja, tem a capacidade de literalmente destruir qualquer país da região. E tem a protecção dos EUA. Igualmente sem sentido é a ideia de que a União Europeia é sistematicamente hostil a Israel, defendida, mais uma vez, por JPP (em texto no Público, publicado no seu blogue). Se a UE o fosse realmente podia paralisar com facilidade a economia israelita que é totalmente dependente das trocas com a Europa, e teria até alguma legitimidade para o fazer visto que o acordo comercial incluiu um compromisso explícito de Israel com o processo de paz. Claro que o que ninguém consegue fazer é competir com os delírios supostamente pró-israelistas de Washington, aliás muito negativos para os reais interesses de Israel (algo que JPP até reconhece.)

Por outro lado, os palestinianos também têm o direito – reconhecido na carta da ONU – de resistir à ocupação estrangeira atacando alvos militares. E o Hizballah reclama para o Líbano uma parcela de território que Israel retém (com o argumento de que a ser de alguém é da Síria) e responde aos bombardeamentos israelistas com o tipo de armamento que tem disponível. Tudo isto mostra como a segurança de Israel é frágil na ausência de uma paz geral (que seja difícil ninguém discute). Ou seja, se começarmos a discutir legitimidades dificilmente chegamos a algum lado.
Isto não é uma guerra, embora possa parecer. Basta comparar-se a situação com a invasão de 1982, e notar-se-á a substancial diferença. Trata-se de coerção estratégica. Israel procura paralisar o Líbano, para coagir a população não-xiita e os demais partidos libaneses, assim como a comunidade internacional interessada em estabilizar o País do Cedro e em deter o fluxo de refugiados, a pressionar o Hizballah.

A ideia de que se pretende destruir o Hizballah é uma miragem propagandística. A sua popularidade – por boas e más razões – entre a população xiita libanesa, a sua organização celular, e os seus apoios externos tornam isso impossível, mesmo que o seu líder fosse morto. Aliás o movimento é filho da invasão israelita do Líbano em 1982, pelo que certamente não será destruído por bombardeamentos localizados. Mais realista é o objectivo reduzir alguma coisa o potencial militar da Hizbullah. Mas para o fazer substancialmente seria necessário invadir. No entanto, isso seria o sinal de que este exercício de coerção estratégica estaria a falhar e poria os soldados israelitas em risco.
Uma solução política, ao contrário do que os “falcões de sofá” fazem crer, é a saída de longe mais provável e desejável da crise, sobretudo se se tratar de recuperar os soldados israelitas com vida. Israel desejaria ainda, idealmente, aproveitar para criar uma barreira entre a Hizballah e a sua fronteira norte. Nesse aspecto uma força internacional transitória, depois substituída pelo exército libanês, poderia ser um resultado muito importante desta crise. Mas, quer isso aconteça, quer não, e se o passado serve de guia, Israel vai sempre acabar por libertar alguns prisioneiros em troca dos soldados – afinal, já o fez em troca de cadáveres. Desde que haja algumas garantias de que a Hizballah e o Hamas não voltarão a repetir a brincadeira nos próximos tempos. (Aliás, o exército israelita estará certamente a estudar e corrigir os erros que permitiram este desastre.)
Um jogo de xadrez, em suma, mas mortífero e perigoso. Seria estranho que este governo israelita se deixasse cair na armadilha de uma escalada sem fim. E o Hizballah, embora seja um dos pioneiros dos ataques terroristas suicidas, está longe de ser uma organização suicida. O Hamas está no poder na Palestina. Mesmo o Irão e a Síria terão interesse, para mostrar o alcance da sua influência, e para evitar um crescendo da pressão internacional e regional sobre os seus regimes, em eventualmente conter a crise. Mas se há algo previsível no Médio Oriente é a sua imprevisibilidade. E se um soldado israelita é morto? E se um foguete ou uma bomba mata demasiado civis? E se Israel realmente elimina algum líder do Hizballah? Teremos de esperar para ver. Esperando que o petróleo não suba mais, e que os custos em vidas inocentes não cresçam.
PS Aproveito para recomendar a quem tiver DVD “americano” a magnífica série: The 50 Years War: Israel and the Arabs. Para quando, por exemplo, no Canal 2?

7 Comments:

Blogger Tiago disse...

Excelente análise, muito equilibrada. Apenas dois reparos, por assim dizer:

1- A escalada do preço do petróleo, quer hoje quer de há muitos meses para cá, está muitíssimo mais ligada a especulação dos "brokers" petrolíferos nos chamados mercados de futuros do que a esta(e outras) crises regionais. Se a lógica fosse realmente crise=preços astronómicos, há muito que a situaçao no Iraque(um verdadeiro exportador de petróleo) teria feito os preços disparar acima dos 100 dolares/barril.
2 - Em que te fundamentas para afirmar isto: "O governo de Israel, o mais civilista e moderado dos últimos tempos"? No poder desde Março deste ano, Olmert, Peretz, Livni e companhia têm torpedeado(and literally speaking) qualquer perspectiva de paz regional. Será pelo facto de serem líderes civis (Peretz sendo até ex-sindicalista de esquerda filo-comunista) que o afirmas? Nada no comportamento deste governo justifica o epíteto "moderado" que lhes atribuiste.
Aliás, a insane operaçao israelita no Líbano augura muito pouco de bom no que diz respeito ao futuro das relações Israel-Irão. Se a guerra no Líbano náo passar de uma "war by proxies", uma espécie de ensaio geral, poderemos ter o caldo bem entornado.
tiago

12:52 da tarde  
Anonymous Anónimo disse...

Acho que aprendi qualquer coisa com este post. Isso é bom. No entanto, fica uma dúvida: se é «altamente improvável» «a tese de Israel ameaçado na sua sobrevivência», como justificar a reacção? O Bruno diz que «é difícil argumentar que algum governo israelita pudesse ter reagido de forma diferente no contexto actual». Ora, não serão precisamente reacções destas o que garante a improbabilidade da putativa ameaça?

1:51 da tarde  
Blogger bruno cardoso reis disse...

Obrigado pelos pertinentes comentários.

Quanto ao petróleo, claro que esta crise só tem o impacto indirecto. Creio que se explica num contexto em que existe um crescimento continuado da procura e uma falta de elasticidade na oferta, que é para mais vulnerável a crises políticas em várias áreas chave (da Venezuela ao Iraque), que será, admito que sim, explorada e agravada por especuladores.

O governo israelita não é "comandado" por um general, e tem ministros civis na maior parte das pastas chaves, inclusive a da defesa. Ele surgiu da convergência de um Partido Trabalhista que tinha no seu programa eleitoral uma política da paz negociada, mas ficou sem interlocutor; e do Khadima, uma dissidência do Likud precisamente em nome de uma política (ainda que unilateral e parcial) de retirada da Cisjordânia. Mesmo que se conteste estas opções, em relação ao passado recente parece-me evidente que são mais moderadas, menos assentes em soluções militares.

O grande problema é que os moderados no Médio Oriente têm estado sempre à mercê dos radicais, porque se não respondem em força a provocações, estão a cometer suicídio político. É por isso que qualquer governo israelita teria respondido (pelo menos) assim.
Mas também porque a maior capacidade de acção militar da Hizballah e do Hamas cria um problema real de segurança, mesmo que não seja uma questão de vida ou de morte para Israel. Se fosse, a resposta seria bem menos limitada.

4:43 da tarde  
Anonymous Anónimo disse...

Excelente post. Obrigado.

5:02 da tarde  
Anonymous Anónimo disse...

sobre este tema gostaria de recomendar o seguinte livro:

Israel and Palestine: Why They Fight and Can They Stop?
by Bernard Wasserstein

http://www.amazon.co.uk/gp/product/1861975589/202-1809321-0555864?v=glance&n=266239&s=gateway&v=glance

5:10 da tarde  
Blogger João Pedro disse...

Óptimo post,e também óptima a análise da situação, muito mais completa do que algumas reacções incendiadas que vemos por aí, de parte a parte.

11:03 da tarde  
Blogger Rafael Galvão disse...

Belíssimo post, um dos mais ponderados e paradoxalmente simples que li ultimamente, quando todo mundo fica meio assustado em tocar no assunto pela sua complexidade.

1:49 da manhã  

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