sábado, janeiro 14, 2006

As intermitências de Saramago

Sou um leitor heterodoxo de Saramago. Nunca achei o Memorial do Convento uma obra-prima e, se considero que O Ano da Morte de Ricardo Reis tem os seus méritos, permanece no limiar do universo de Fernando Pessoa. O grande romance do Nobel português é o Ensaio sobre a Cegueira. As controvérsias, repúdios e equívocos que tem gerado são desencadeadas pela sua postura de autor. Por regra, Saramago escreve melhor do que pensa. As suas intuições vão muito além das suas ideias e as suas visões são mais densas do que os seus raciocínios.
Abordei As Intermitências da Morte com curiosidade. A especulação ficcional sobre as consequências da imortalidade sobre a espécie humana já fora feita por Jorge Luís Borges no conto «O Imortal» de O Aleph. Borges afirma o seu pessimismo ao escrever «que num prazo infinito todas as coisas ocorrem a todos os homens» anulando qualquer mérito moral ou intelectual. «A morte (ou a sua alusão) torna os homens preciosos e patéticos. (…) Tudo, entre os mortais, tem o calor do irrecuperável e do fortuito. Entre os Imortais, ao contrário, cada acto (e cada pensamento) é o eco de outros que no passado o antecederam, sem princípio visível, ou o fiel presságio de outros que no futuro o repetirão até à vertigem».
Saramago envereda por outro caminho. A imortalidade dos homens encontra-se restrita a um pequeno país e depende dos caprichos da morte. Durante as primeiras cento e quarenta páginas, um narrador, cuja sabedoria é a soma dos conhecimentos dos habitantes do país imaginário, dá uma visão panorâmica das consequências da imortalidade numa população de dez milhões de habitantes. De um ponto de vista formal, é notável que o autor se aproprie das técnicas do «conto de argumento» usadas por Allan Pöe, Kafka, Pessoa ou Borges para escrever dois terços de um romance, mantendo interesse da narrativa. Quanto às ideias, vão surgindo as opções e opiniões discutíveis. A imortalidade de Saramago é a da eterna doença ou velhice, não está em causa o desejo da eterna juventude associado ao da imortalidade. Desta primeira opção surgem os grandes problemas: os lares atolam-se, as agonias prolongam-se, as previsões para a sustentabilidade da segurança social apontam para o colapso. Alguns moribundos optam por morrer dignamente atravessando a fronteira para um país vizinho onde o regular funcionamento da morte se encontre garantido. Logo há vozes a clamar contra a eutanásia e uma atitude dúplice de um Governo impedido de aprovar uma prática que no fundo lhe convém. Surge uma maphia (sic) a beneficiar da situação, pois contrabandeia moribundos e trata do seu falecimento.
O autor aproveita para dar as costumadas bicadas na igreja católica colocando na boca de um cardeal que sem morte não há ressurreição e sem ressurreição não há igreja. Tese fraquinha se pensarmos que Jesus da Nazaré reunia multidões em vida e apenas um pequeno grupo de fiéis acreditou que tinha ressuscitado logo após a crucificação. As igrejas procuram dar sentido e valor a uma vida marcada ou ameaçada pelo sofrimento, a sensação de absurdo, a insignificância. A morte é o desafio mais radical que têm de enfrentar. O sarcasmo do narrador contradiz-se pois ataca a igreja por desejar uma «boa morte» para as pessoas e, ao mesmo tempo, leva o leitor a simpatizar com os moribundos que atravessam a fronteira em busca de uma morte digna.
As contradições e os paradoxos são pecado nos pensadores e alimento dos artistas. Após dois terços do romance gastos em defesa das vantagens de um regular funcionamento dos óbitos, a visão panorâmica cede lugar a uma história de amor e morte entre a dita morte e um violoncelista. A morte justificável de um ponto de vista social torna-se inaceitável face a uma pessoa concreta. Mesmo tendo do seu lado a Razão, a morte revela-se impotente face ao amor e à música. Não é um romance coerente mas tem outras qualidades.