segunda-feira, novembro 26, 2007

Alívio

Foi com alívio que fiquei a par das declarações de Paulo Portas a 25 de Novembro: «o caminho do CDS é ser uma alternativa à esquerda e aos socialistas» e «Eu com os socialista não compactuo». É que há quem seja fã de Sócrates e veja numa coligação PS-CDS/PP a única solução admissível num cenário pós-maioria absoluta do PS. Um Governo Sócrates-Paulo Portas seria uma sequela bizarra do Governo Santana Lopes- Paulo Portas.

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Delírios de estilo

O Público tem feito uma cobertura sóbria sobre o desaparecimento da Maddie, mas na edição de hoje os jornalistas que assinam a peça entram em delírio escrevendo tiradas de mau gosto. Vejamos: «Era fácil para quem observasse saber exactamente a melhor altura para entrar no apartamento – no crepúsculo, quando Kate e Gerry se afastassem para jantar e o movimento diminuísse na rua. A oportunidade surgiria, seria fácil aproximar-se, tocar, cheirar a frágil menina loura e de olhos grandes».
Quanto à notícia em si, a reabilitação da hipótese de Maddie ter sido morta por um intruso, não altera em nada a minha opinião sobre o caso. Não perfilho nenhuma «teoria». O que conheço do caso é suficiente para saber que os MacCann foram negligentes e instigaram uma campanha contra a polícia portuguesa repleta de má fé e de acusações sem fundamento. Quanto ao que falta saber, preferia que Maddie estivesse viva e fosse encontrada. Infelizmente, todos os indícios apontam no sentido contrário.

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A transformação

«Quando uma manhã Gregor Samsa acordou de sonhos inquietos, viu-se deitado na sua cama transformado num monstruoso insecto. Estava deitado de costas, rijas como uma couraça, e, cada vez que levantava um pouco a cabeça, via a barriga castanha, abaulada e dividida por escoras em forma de anéis, no cimo da qual a coberta, prestes a resvalar por completo, mal se aguentava. As suas muitas patas, lastimavelmente delgadas em comparação com o resto do corpo, tremulavam, desamparadas, diante dos olhos.
"O que me aconteceu?" pensou ele. Não era um sonho. O seu quarto, um quarto normal, só que demasiado pequeno, estava ali, sossegado, entre as quatro paredes familiares. Por cima da mesa, sobre a qual se estendia um mostruário de tecidos desempacotados – Samsa era caixeiro-viajante -, estava pendurada a estampa que recortara recentemente de uma revista ilustrada e colocara numa bonita moldura dourada. Representava uma senhora, sentada direita com um chapéu de pele e uma boa, brandindo contra o espectador um pesado regalo de pele, que cobria por completo todo o seu antebraço.
O olhar de Gregor dirigiu-se então para a janela, e o tempo sombrio – ouvia-se o gotejar da chuva na chapa do parapeito – tornou-o profundamente melancólico. "Que tal se dormisse ainda mais um pouco e me esquecesse de todas estas tolices", pensou, mas isso era totalmente inexequível, pois estava habituado a dormir sobre o lado direito, mas na situação presente não conseguia pôr-se nessa posição. Fosse qual fosse a energia que empregasse para se atirar para o lado direito, voltava a baloiçar para a posição de costas. Deve ter tentado umas cem vezes, fechou os olhos para não ter de ver as patas que se agitavam e só desistiu quando começou a sentir de lado uma dor ligeira, indistinta e nunca antes sentida.
"Ai, meu Deus", pensou, "que profissão cansativa fui escolher! A viajar, dia sim, dia não. As preocupações relacionadas com os negócios são muito maiores do que se estivesse na firma propriamente dita, para não falar neste tormento de viagens que me são impostas, a preocupação que se tem de ter com as ligações dos comboios, as refeições más e irregulares, um relacionamento humano sempre instável, nunca duradoiro e que nunca chega a ser afectuoso. Diabos levem tudo isto!" Sentiu uma leve comichão, coberto de pequenos pontinhos brancos, que não soube explicar; e quis tocar no sítio com uma pata, mas retirou-a de imediato, pois ao tocar, sentiu-se invadido por uma sensação de calafrio.»
KAFKA, Franz, Os Contos. 1.º volume. Textos publicados em vida do autor, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004, pp. 111-112.

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sexta-feira, novembro 23, 2007

Quando os animais falam de política

Há animais políticos e animais que falam de política. E também animais políticos que põem animais de outra espécie a falar de política. Quando Rosa Luxemburg foi fuzilada, Lenine comentou: «Já vi águias a voar tão baixo como galinhas, mas nunca vi uma galinha a voar tão alto como uma águia.». Rosa, fique entendido, era uma águia. Umas décadas mais tarde, George Orwell cunhou no Triunfo dos Porcos o célebre «todos os animais são iguais, mas uns são mais iguais do que outros». Hoje, em declarações ao Rádio Clube Português sobre o orçamento de Estado para 2008 e o estado da economia, Miguel Cadilhe renovou a retórica política de inspiração animalesca: «Às vezes uma lesma anda mais depressa, mas não deixa de ser uma lesma».

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Frazer e Malinowski explicam

Via Tiago Mendes, no blogue da Atlântico, dou com uma extraordinária peça de pensamento mágico, da autoria de João Pinto e Castro. A propósito da tradicional visita ad limina dos bispos portugueses a Roma, o autor exprime a sua preocupação com uma eventual "conversa de surdos" havida entre o episcopado luso e o Papa Bento XVI, já que, segundo o autor do Blogo Existo, do catolicismo popular português "desapareceu qualquer traço de religiosidade genuína, para sobrar apenas a superstição", e que ninguém terá coragem para explicar isto ao sucessor do apóstolo Pedro. Mas como afere João Pinto e Castro o grau de pureza do comportamento religioso do povo católico? As crises e desafios inerentes a esta confissão religiosa, estudou-os? Ficamos sem saber. O autor apenas partilha com quem o lê a sua crença de que o catolicismo português se reduz hoje "aos terços pendurados nos retrovisores que constituem a verdadeira previdência rodoviária, às cerimónias de benção das pastas dos universitários finalistas e às faustosas festas de casamento e baptizados que sinalizam a ascensão social dos promotores" e que, por causa de um "tsunami social que o país sofreu nos últimos anos", teve "afinal razão Afonso Costa: o catolicismo que ele conheceu desapareceu para todos os efeitos práticos antes de terminado o século vinte." Neste raciocínio causal não-científico, não couberam, claro está, estatísticas sobre as práticas missalizantes de milhares de paroquianos deste país (produzidas pelo INE e tudo), ou estudos académicos sobre a sua religiosidade (de universidades não-confessionais e tudo). Não couberam, para além de "promessas, benzeduras, relíquias, esconjuros, penitências, ex-votos, terços e procissões", relatos das vivências e acções semanais, mensais, anuais, de dezenas de agremiações de católicos das mais diversas profissões, de centenas de núcleos de leigos pertencentes às Conferências de São Vicente de Paulo ou à Caritas, de milhares de jovens adultos integrados no Corpo Nacional de Escutas, só para referir uns poucos exemplos. Desde quando a realidade é tão simplesmente o que cada um de nós acha, ou deseja? As críticas ou invectivas às instituições religiosas, quando se sustentam em informação, são mais que válidas. Se me permite, João Pinto e Castro: ponha os olhos em Fernanda Câncio, que as faz com frequência, mas nunca em negação, e sempre com o trabalho de casa em dia.

[Capa: Magical Thinking, de Augusten Burroughs, publicado em 2005]

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terça-feira, novembro 20, 2007

Anda um homem a escrever livros para responder sobre se vai à Fnac

Achei a entrevista dada por Vasco Pulido Valente ao Expresso [transcrita aqui] de pouca uva, e a parra não é da responsabilidade de quem responde. Numa centena de questões, apenas uma dúzia disse respeito à sua obra; outras tantas, se tanto, reportaram à sua intervenção política. O resto parece um trivial pursuit de perguntas para queijo: pelo menos a mim, como leitora, não me entusiasma lá muito saber se o autor gosta de ir ao Colombo, se teve carro quando era jovem, se é fã dos Gato Fedorento, se fumou e travou, por que mora com vista para o estádio do Benfica. Ainda assim, a parte com sumo foi suficiente para ficar curiosa acerca do novo livro. Bem como para saber que o autor tem justa medida do valor de Glória, a biografia de Vieira de Castro que é seguramente uma das melhores peças historiográficas portuguesas que li. E ainda garantiu uma gargalhada, naquela parte em que afirma que não é possível ser-se um grande historiador num país pequeno.

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segunda-feira, novembro 19, 2007

Dalailemos mais um bocadinho

Parece que Portugal devia ter usado a Presidência da UE para receber o Dalai Lama. Eu estimo a intenção e estimo muito o Dalai Lama. Estimo incomparavelmente mais do que ao brutal governo comunista e ateu chinês que persegue protestantes, católicos, budistas vários.
Mas os meus desgostos não impedem que me dê conta de alguns problemas com esta esta tese. Primeiramente, acho ridículo que as mesmas vozes (em bloco) que criticam que o Santo Padre seja recebido com as honras de Chefe de Estado que lhe são devidas e universalmente reconhecidas, venham depois reclamar para o Dalai Lama recepções oficiais que ele nem pediu (com o Presidente da República) ou que não têm qualquer justificação pelo seu estatuto - visto que ele não é reconhecido por ninguém como Chefe de Estado (nem estritamente o reclama.)

Logo de seguida, apareceu o bom exemplo da chanceler alemã Angela Merkel, a qual recebeu o Dalai Lama. Houve notícias e comentários por todo o lado. Estranho que agora os jornais e blogues portugueses pareçam ter-se esquecido de dar o devido relevo à sequela.

O Ministro das Finanças alemão acabou de ser forçado a cancelar, no último minuto, uma visita oficial à China, em que seria acompanhado de empresários alemães, depois de ter sido informado que afinal o seu homólogo chinês não o poderia receber como estava previsto.

Valeu a pena? O Tibete foi liberatado? A China mudou de política? Parece que não. Nem acredito que o faça em resposta a pressões externas públicas e abertas numa questão em que a prioridade de Pequim é precisamente marcar a soberania nacional chinesa.

Os riscos de uma política externa errática ao sabor dos humores populares, das causas do momento, sem noção do quais serão os custos e benefícios seria especialmente penosa para um país como Portugal. As boas intenções não bastam, são precisas boas políticas, boa diplomacia, bom-senso. Os direitos humanos, os valores e os interesses portugueses não merecem menos.

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Almanaque do Povo

Domínio Público: O homónimo portal brasileiro, lançado há três anos, disponibiliza em acesso livre um importante número de obras em português (imagem, texto, vídeo e áudio). Uma ferramenta a ter em conta, também por cá.

Outros Meios
: por causa de uma sugestão postada há dias pelo maradona deambulei pelas páginas da MediaStorm, uma verdadeira central de divulgação de projectos multimédia. Sobretudo no campo documental e jornalístico, podem-se ali encontrar objectos narrativos de uma singularidade e delicadeza desusadas. Há muito que ver. Se tivesse de destacar um, escolheria o projecto Ed Kashi e Julie Winokur intitulado Friends for Life; é apenas um pedaço de uma obra maior, mas chega para mostrar a distância que vai entre a habitual exploração mediática das emoções e a lúcida contemplação da humanidade.

Divulgação: O Centro de Reflexão Cristã reinicia amanhã, dia 20, pelas 18:30, no auditório do Centro Nacional de Cultura, o seu ciclo anual de colóquios. Esta primeira edição 2007/2008 conta com a participação de Anselmo Borges, Maria José Bijóias Mendonça e Teresa Martinho Toldy, e intitula-se "A actualidade de Cristo - abrir horizontes". A entrada é livre, estão todos convidados.

sábado, novembro 17, 2007

A prostituição segundo Dostoiévski

«(…) Mas, aqui vai o que eu tenho para te dizer sobre isto, sobre a vida que levas agora: tu agora és bonita, és nova, és sincera; e pronto, quando acordei, há pouco, senti mesmo nojo por estar aqui contigo! Só em estado de embriaguez é que podemos vir parar aqui. Se tu estivesses noutro sítio qualquer, se vivesses como gente decente, talvez eu não só te tivesse desejado, me tivesse apaixonado, pura e simplesmente, ficasse feliz só com um olhar teu, já nem falo de uma palavra tua; talvez ficasse à tua espera como minha noiva, e visse isso como uma grande honra. Nunca pensasse nada de impuro sobre ti. Mas aqui, basta eu assobiar – e tu, queiras ou não, tens de me seguir, não és tu quem me dita a tua vontade, sou eu quem faz segundo a minha. O último dos camponeses aluga-se como jornaleiro, mesmo assim não se vende completamente, sabe que há um prazo. E o teu prazo, qual é? Pensa só: o que estás aqui a dar, o que vendes aqui? A tua alma, sim, a tua alma, que não te pertence, que vendes ao mesmo tempo que o teu corpo! Expões a vexames o teu amor com o primeiro bêbado que apareça! O teu amor! Mas isso é tudo, é o teu diamante, o teu tesouro de rapariga, sabes o que é o amor? Há quem, para merecer o amor, esteja pronto a empenhar a alma, a deixar-se matar. E o teu amor, quanto vale ele agora? Compraram-te toda, és vendida na totalidade, e para que serve pedir amor se sem amor se pode pedir tudo? Não existe ofensa mais grave para uma rapariga, não entendes isso? Ouvi dizer que vos deixam divertir, que vos deixam ter amantes. Não passa de uma brincadeira, pobres tolas, uma mentira, um sarcasmo que vos fazem, e vós engolis isso. Será que te ama de verdade, o teu amiguinho? Não acredito. Como pode amar-te, se sabe que basta eu assobiar para que o deixes? É um depravado! Tem alguma estima por ti, por mínima que seja? Que tens de comum com ele? Ele ri-se de ti e, ainda por cima, rouba-te – é esse o amor dele! Do mal o menos, se ele não te bater! Porque ele até, se calhar, te bate. Pergunta-lhe, caso tenhas um, se ele se quer casar contigo. Vai rir-se-te na cara, se não te cuspir em cima, se não te bater, e no entanto ele próprio não vale dois tostões. Por que continuas aqui, a desperdiçar a tua vida? Porque te dão café e comida farta? E dão-te comer porquê? (…) Estás em dívida aqui, vais estar sempre endividada, até ao fim, até ao momento em que os hóspedes já não queiram nada de ti. E isso vai acontecer muito em breve, não contes com a tua juventude. Tudo desaparece num abrir e fechar de olhos, aqui. Vão pôr-te no olho da rua. E não vão contentar-se em pôr-te fora, antes disso vão começar a maltratar-te, a censurar-te, a injuriar-te, como se não tivesses dado a tua saúde, como se não tivesses arruinado por nada a tua alma e juventude, mas como se fosses tu que tivesses deixado a tua patroa na miséria, a deixasses sem nada, como se fosses tu que a espoliasses. E não esperes por apoios: as tuas amigas vão unir-se contra ti para lhe agradar, são todas escravas disto, há muito que perderam a consciência e a caridade. (…) E tu não te atreverás a dizer uma palavra que seja, não abrirás a boca, quando te puserem fora daqui vais-te embora como uma ladra. Depois passas para outro sítio, depois para outro, depois não sei mais para onde, até ires parar à praça Sennaia. Entretanto, já terão começado a bater-te, é a maneira de serem bem-educados; não acreditas que as coisas sejam tão horríveis, ali? Vai lá um dia, dá uma olhadela, e então verás, com os teus próprios olhos. Uma vez vi lá uma, no dia de Ano Novo, em frente à porta. Tinha sido deitada para a rua pelas amigas, só para apanhar um bocado de frio, porque chorava de mais, fecharam a porta atrás dela. Às nove horas da manhã já estava completamente bêbada, desgrenhada, seminua, moída de pancada. Na brancura do rosto pintado ressaltavam-lhe as olheiras negras; escorria-lhe o sangue do nariz e das gengivas: fora um cocheiro que tinha acabado de molhar a sopa. Estava sentada nos degraus de pedra, tinha na mão um peixe salgado; chorava, murmurava qualquer coisa sobre a sua má sina e batia com o peixe nos degraus. E frente ao patamar amontoavam-se soldados bêbados e cocheiros que se riam dela. Não acreditas que também vais ficar assim? (…) Não, Lisa, para ti a felicidade seria morreres depressa, não sei onde, num buraco numa cave como a desta manhã, e morrer de tísica. (…) Podes crer, é assim: vendeste a alma, além disso deves dinheiro, não te atreverás a abrir o bico. E, quando estiveres a morrer, todos te abandonam, todos se desviam de ti – o que te resta para dar? Vão censurar-te por ocupares ainda um lugar de graça, por não te despachares a passar-te. Vais ter de pedir muitas vezes que te dêem água, e quando ta trouxerem será com insultos: “Vê se te despachas a morrer, galdéria, não deixas a gente dormir, gemes, incomodas os clientes.” É o que te digo, eu próprio ouvi palavras dessas. Vão enfiar-te, na tua agonia, no buraco mais fétido, no fundo de uma cave – a escuridão, a humidade; e tu ali deitada, sozinha, em que pensarás? Depois morres, amortalham-te à pressa, um qualquer, refilando – não há tempo! -, ninguém para te benzer, ninguém mesmo para soltar um pequeno suspiro por ti, depressa que se faz tarde. Compram-te um caixão barato, tiram-te da cave, como tiraram de manhã essa desgraçada, fazem o teu banquete de luto numa taberna. Na campa rasa – a lama, a sujidade, essa neve líquida; para quê, fazer cerimónias? “Toca a baixá-la, Vânia; lá vai a má sina dela – de pernas para o ar aqui também, a grande porca. Mas encurta-me essas cordas, rapaz” “Estão bem assim.” “Mas como é que estão bem assim? Não vês que ela está de lado? É um ser humano, ao fim e ao cabo! E depois, que se amole! Vai, deita a terra.” Os coveiros não vão querer zangar-se por tua causa. Depressa te cobrem com esse barro azul, molhado, e voltam à taberna…E assim desaparecerá da face da terra a tua memória. Às outras vêm os filhos visitar o túmulo, vêm os pais, os maridos – a ti, nem uma lágrima, nem um suspiro, uma oração, ninguém, ninguém no mundo inteiro, nunca virá mais para junto do teu túmulo; o teu nome desaparecerá da face da terra – assim, como se nunca tivesses existido, como se não tivesses nascido! A lama e o pântano. Bem poderás bater todas as noites, quando os mortos se levantam, na tampa do teu caixão: “Abri, boa gente, deixai-me viver mais! Vivi e não vi nada da vida, a minha vida desfez-se em fanicos; beberam-me a vida, numa taberna da praça Sennaia: abri, boa gente, para eu recomeçar a vida!...”»
DOSTOIÉVSKI, Fiódor, Cadernos do Subterrâneo, Lisboa, Assírio & Alvim, 2007, pp. 147-152.

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quinta-feira, novembro 15, 2007

Ofensa real...

Almanaque Num Minuto

Sem tempo ou talento para uma posta-zeitgeist que se apresente (noutro dia escrevo sobre as grandes sovas de vento que já levei nas plataformas da Gare do Oriente, ou sobre o último episódio d'A Guerra, que foi bastante bom), aqui ficam os links para umas duas ou três que não me importava mesmo nada de ter escrito.

sexta-feira, novembro 09, 2007

A reabilitação do património

Numa época em que as constantes transformações da sociedade ameaçam o desaparecimento das referências que garantem a entidade cultural de uma civilização, suscitam-se perplexidades e dúvidas quanto à forma de actuar sobre a nossa herança cultural (veja-se, a título de exemplo, o caso da reabilitaçao urbana da baixa pombalina).
Se analisarmos a essência da nossa existência é, sem dúvida, a memória que prolonga irreversivelmente o passado no presente.
A existência do património, por força da sua própria essência matérica e funcional, reflecte o espírito da criação do autor, a partir do momento em que inicia o seu percurso. O acto de intervir em defesa desse mesmo património, implica um somatório de inúmeros esforços para reponder às exigências que o mundo moderno nos impõe, e, sobretudo, não pode degenerar numa evolução que, partindo de uma ideia humanista, acabe por redundar em fundamentalismo, mesmo com base na intenção de preservar cada identidade cultural. Em todo o caso, e em virtude desta mudança, as reflexões que vêm sendo produzidas, parecem consolidar o princípio de que a salvaguarda de valores patrimoniais a uma escala planetária assenta no reconhecimento do relativismo cultural.
Com a elaboração da Carta de Nara, adivinha-se a vontade de organizar uma escala de verificação de atributos para reflectir a propósito das finalidades de autenticidade do património construído. No entanto, a aplicabilidade de um conjunto de critérios técnicos e organizativos não deveriam deixar de ser confrontados com os testemunhos actuais das histórias das cidades que são marcados por sucessivas (re)interpretações.
A reabilitação do património deve concentrar-se nos elementos do presente, não perdendo a postura ajustada do dever de salvaguardar a memória comum. Na verdade, parece-me que da interacção entre responsabilidade e liberdade resulta a ajustada actuação.

O Embaixador Presente


O Embaixador Santana Carlos que nos representa na Grã-Bretanha disse presente e falou há dias sobre algumas das distorções que há meses fazem correr rios de tinta na imprensa britânica sobre o caso de uma criança britânica desaparecida em Portugal. A reacção racista, ignorante e de sarjeta do Daily Mirror não pode espantar, é até sinal seguro de que se está na via certa. Mas mais significativo é o facto do jornalista do Times não conseguir esconder o seu espanto com o facto de o embaixador português - com alguns cuidados diplomáticos, diga-se - se atrever a fazer algumas comparações ou considerações menos elogiosas para os britânicos. Parece que certos media ingleses gostam mesmo de nós é caladinhos e respeitosinhos.
IMAGEM: The Ambassadors por Hans Holbein.

Os "novos pobres"

Se fizerem uma pesquisa google em torno dos últimos relatórios sobre a pobreza em Portugal descobrirão que não são animadores, colocando o país na cauda da Europa. Há cada vez mais diferenças entre ricos e pobres e a riqueza está cada vez mais concentrada nas mãos de cada vez menos pessoas.
O que é interessante constatar é que em relatórios sobre a pobreza não são consideradas as realidades paralelas de pobreza, outras formas de se ser pobre, que acabam por não constituir manifestações exteriores de pobreza tão evidentes como as normalmente referenciadas, não sendo, assim, alvo de objecto de estudo. A “nova pobreza” é um fenómeno que se apresenta afectando principalmente a classe média que trabalha por conta de outrem ou que possui pequenos negócios.
Para que este fenómeno tivesse lugar, o Estado previdência, modelo social de assistência mútua, baseado no princípio da solidariedade de todos e arquitectado em volta da capacidade contributiva dos cidadãos, por razões de conjuntura e de estrutura, entrou em ruptura e como qualquer corpo agonizante debate-se e luta afincadamente pela sobrevivência, consumindo as energias, ou seja, as magras poupanças dos contribuintes mais “à mão de semear”.
Não se prevê, dentro do actual quadro politico-partidário, uma grande preocupação com este fenómeno que, face à falta de alternativas, não atinge necessariamente aqueles a quem comummente apelidamos de pobres, uma vez que estes não pagam a crise pois nada têm. É a classe média, que caminha a passos largos para a pobreza, que paga a factura das políticas erráticas dos sucessivos governos desde 74.
Daquilo que me pude aperceber, o novo orçamento de Estado parece ser rigoroso na despesa mas investimentos faraónicos continuam a existir e a questão coloca-se: quem é que os paga? Enquanto faltarem alternativas políticas para evitar o crescimento desta “nova pobreza” que emerge na nossa contemporaneidade, o futuro apresenta-se com muitas reservas.
É certo que a pobreza não se confina a uma mera falta de dinheiro, incidindo também na falta de acesso às necessidades que conferem dignidade na vida portuguesa. Portugal é o país da União Europeia onde há mais desigualdade social, onde é maior o fosso entre ricos e pobres, o que é característica dos povos em vias de desenvolvimento.

quinta-feira, novembro 08, 2007

Aviões e assadores de castanhas

O ministro dinamarquês de Negócios Estrangeiros contestou com argumentos ecológicos a assinatura do Tratado de Lisboa pelos 27 líderes dos países europeus. Alguém fez as contas e chegou à conclusão de que as viagens, em avião privado, à capital portuguesa representavam um suplemento de 75 mil quilómetros e a emissão de 250 toneladas de dióxido de carbono para a atmosfera – o mesmo causado pelo aquecimento de uma casa dinamarquesa durante 25 anos. Alternativas propostas seriam aproveitar a deslocação dos ministros dos negócios estrangeiros europeus à cimeira euro-africana, que se realiza em Lisboa, no início de Dezembro, ou assinar o Tratado de Lisboa, com este nome, em Bruxelas. Estas alternativas não agradam à presidência portuguesa da União Europeia que mantém o plano inicial.
Li esta notícia, pouco tempo depois de ouvir outra de carácter mais corriqueiro, mas não menos simbólico: os assadores de castanhas que fazem parte das minhas memórias visuais e olfactivas da infância vão ser substituídos por assadores de inox, em estrita obediência às normas europeias. Contaram-me que uma jornalista televisiva apanhou uma belga nas ruas lisboetas e perguntou-lhe: «Então como é que são os assadores de castanhas no seu país?» «Em Bruxelas os assadores de castanhas são de ferro fundido.»
Estas duas histórias contrastantes introduzem-nos na complexada complexidade do «bom aluno para inglês ver». É uma personagem de rostos múltiplos e filiações partidárias variadas que facilmente manda às urtigas as tradições nacionais mais inócuas, com um zelo aparentemente humilde, mas não perde uma oportunidade de se pôr em bico de pés ao lado dos grandes, de armar-se em carapau de corrida. Durão Barroso nos Açores, ao lado de Bush, entrando sorridente para a História da invasão do Iraque foi um «bom aluno para inglês ver». Sócrates ao lado de Putin mostrou como nem só os ingleses nos vêem e conseguimos marcar presença em mais do que um lado errado da História.
Apesar de eu não ver muitas razões para fazer finca-pé na assinatura do Tratado de Lisboa na dita cidade, os argumentos das organizações ecológicas e do ministro dinamarquês causam-se alguma perplexidade. Sou um ecologista de longa data, mesmo antes de me ter filiado numa associação ecológica aos 14 anos. Mas não creio que o ambientalismo possa ser um valor único ou absoluto. Se estes argumentos forem aplicados sistematicamente nenhuma ONG europeia, por exemplo, alguma vez organizará um Congresso em Cabo Verde. Os aviões diminuem as discrepâncias entre centro e periferia, entre Norte e Sul. O turismo de massas globalizado que os aviões permitem terá os seus inconvenientes, mas permite insuflar algum dinamismo económico em regiões subdesenvolvidas. Observei isso na Tanzânia. Perto do Quilimanjaro há um aeroporto internacional certamente responsável pela emissão de muitas toneladas de CO2 para a atmosfera. Mas sem esse aeroporto e a afluência de turistas que permite seria mais difícil conservar o Parque Natural do Quilimanjaro e encarar a preservação de paisagens naturais como um investimento económico. Ou proporcionar a tantos africanos as oportunidades de trabalho e de negócio que vão desde carregar a carga dos montanhistas até à venda de bastões de caminhada, de comida, ou a organização de safaris.
Com menos aviões a cruzar os céus haverá menos poluição mas alargar-se-á o fosso entre regiões ricas e pobres.

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Sampaio revisto e perdoado

A estreia de Pedro Santana Lopes como líder parlamentar do PSD não me surpreendeu e fez-me reflectir sobre o controverso momento em que o Presidente da República, Jorge Sampaio, aceitou Santana como primeiro-ministro. Como muitos outros, fiquei indignado. Pensei – e de certo modo continuo a pensar – que estávamos perante a manifestação de uma grave crise da nossa democracia representativa. Pareceu-me absurdo que Sampaio, um político que passava o tempo a falar da necessidade de uma democracia mais participativa, corroborasse a escolha de um primeiro-ministro pelo Conselho Nacional do PSD, para suceder ao seu adversário vitorioso no último congresso do partido. Durão Barroso partia Bruxelas sem dar sinais de incómodo por deixar no seu lugar um homem que definira como «um misto de Zandinga e de Gabriel Alves». Cheguei mesmo a defender neste blogue uma alteração da lei de modo a impedir a repetição da mesma história com outras personagens: no caso de saída de um primeiro-ministro eleito o vice primeiro-ministro ocupava interinamente o cargo até ao novo primeiro-ministro ser eleito num congresso especial ou pelo grupo parlamentar do partido respectivo.
Hoje é óbvio que estas mudanças na lei seriam irrelevantes. Santana Lopes foi eleito líder do grupo parlamentar do PSD com 70 por cento dos votos, depois de ter sofrido uma derrota eleitoral histórica, a qual deu pela primeira vez uma maioria absoluta ao PS. Pior: muita gente no PSD continuou a ver a dissolução do parlamento por Jorge Sampaio como uma manobra politiqueira, mesmo depois do sentido do voto do eleitorado ter justificado a posteriori a decisão do Presidente da República. Quanto às «elites» do PSD, chocadas com a eleição de Luís Filipe Menezes pelas «bases revoltadas», parecem ter-se esquecido que foi pela mão de uma centena de notáveis do partido que Santana chegou ao poder.
Sampaio foi um Presidente tranquilo que se mostrou à altura de duas grandes crises: a de Timor-Leste no primeiro mandato e a sucessão de Durão Barroso por Santana Lopes no segundo. Teve ainda um gesto diplomático hábil e simpático aquando da visita do Dalai-Lama a Portugal, favorecendo um encontro informal entre ambos no Museu Nacional de Arte Antiga.
Quanto à democracia representativa continua embrulhada e será preciso mais que duas ou três medidas para desatar este nó.

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quarta-feira, novembro 07, 2007

A Revolução de Outubro foi em Novembro (Leituras para o Povo)

A primeira revolução comunista vitoriosa - ou mais precisamente golpe de Estado - teve lugar faz hoje 90 anos na Rússia, o Estado mais frágil e portanto mais atingido por aquele que foi um dos anos mais terríveis da história da Europa: 1917. Conhecida por Revolução de Outubro - porque o calendário russo, como mais algumas coisas, estava atrasado face ao resto da Europa - teve na verdade lugar a 9 de Novembro. O mais inofensivo de muitos equívocos.

Os resultados foram terríveis, trágicos: a utopia agora, tudo para os trabalhadores e os camponeses já, acabou logo em 1918 na instalação da ditadura. Em Janeiro de 1918 os comunistas dissolveram a Assembleia Constituinte em que o partido livremente mais votado foram os Socialistas de Kerensky (expulso por eles do Palácio de Inverno no tal Outubro vermelho)! Acabou, sobretudo, em 1991, depois de milhões de mortos, no mais completo colapso político e económico.

Dessa história resultaram duas das obras maiores da historiografia contemporânea. De Marc Ferro, o clássico que estabeleceu um novo patamar - La Révolution de 1917. De Orlando Figes, um dos mais bem escritos livros - A People's Tragedy - que conheço da historiografia britânica. O povo tem muito que aprender com estes noventa anos passados.

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Orçamento no País das Maravilhas

Parece que são os portugueses que pagam a crise. Somos nós que sustentamos o orçamento. Leram bem: os portugueses!! Os portugueses é que pagam o orçamento português!!!! Onde é que já se viu uma tal enormidade, tal escândalo!!!! (Maus hábitos passados, com certeza, mas o mundo muda). Custa, eu sei. Mas custa ainda mais a imaturidade, o primarismo de certos argumentos.

Talvez fosse melhor que alguns dos demagogos que abundam por aí fossem usar os seus dotes a tentar convencer os alemães - já não digo os marcianos - a pagarem (ainda mais um bocadinho?) as nossas despesas.

Durante anos um dos grandes escândalos nacionais era a fuga ao fisco. Os governos eram suspeitos de cumplicidade com o capital. Agora o grande escândalo é que a descida do deficit seja conseguido em parte pela maior eficiência fiscal!!! Realmente...

Mas pelo menos isto resolve-se facilmente. Creio que ninguém duvidará que se a oposição prometer que vai aumentar a ineficiência fiscal poderá facilmente cumprir. Bem mais facilmente, certamente, do que subir os salários ao gosto dos sindicatos (para os ter do seu lado) descer os impostos e aumentar as prestações sociais (porque os pobres sofrem) ao mesmo tempo.

Mas de todo este circo algo se salvou: o Prós e Contras de segunda-feira, ou mais precisamente o Silva Lopes Show. Também eu temo algum afrouxamento do impeto reformista, mas seria pateta não apoiar um esforço indispensável para salvar o Estado social (mauzinho, mas melhor que nada) e a economia portuguesa. Há mais a fazer? Há coisas contestáveis? Há sempre. Mas quem fez melhor? Mas quem fez tanto? No entanto, parece que há muito quem prefira adormecer a contemplar as estrelas por um buraco no tecto orçamental. O acordar, mais tarde ou mais cedo, será desagradável.

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Step One



Gosto bastante desta canção dos Fray, homónima do álbum de 2005. Hoje é quase impossível não a associar à Anatomia de Grey, por isso quis aqui deixar o clip original, para quem não o conheça. O Isaac Slade diz que ela nasceu de uma tentativa de ajuda não muito bem sucedida. Nem sempre a amizade resolve, mas nenhuma tentativa é realmente em vão.

terça-feira, novembro 06, 2007

Ou eu vivo noutro mundo

, ou alguma coisa muito errada se passa na cobertura mediática das catástrofes rodoviárias dos últimos dias. Desde quando é que deixou de ser obscena e indigna a transmissão e repetição de imagens explícitas (parciais ou integrais) de cadáveres? Por mais anestesiados que estejamos, o respeito devido a quem morreu caducou?

segunda-feira, novembro 05, 2007

Não ir de férias

Com agradecimentos ao Fernando Martins e desculpas a Vasco Pulido Valente, aqui transcrevo o início de uma crónica a caminho de se tornar um clássico:
«Uma das minhas mais velhas ambições, só compreensível para quem viveu em Lisboa nos anos 50, é passar as férias à janela, de pijama de flanela às riscas, a cuspir para a rua e a ler A Bola.
A paz de espírito e a confiança no mundo que a mera contemplação destas actividades plácidas me inspiravam não se pode imaginar. Vinte e cinco anos de tumultos, agonias, ambições, apetites e fraquezas conservaram-me cá em baixo, sem A Bola, intensamente ocupado a perseguir as mulheres da minha vida, escrever livros absurdos, regenerar a Pátria e educar a minha filha, se a palavra “educar” descreve o que, entre outras coisas, lhe fiz.
Este ano ainda não vou passar férias para uma janela. Várias circunstâncias se opõem a isso: as minhas janelas são altas demais para cuspir com verdadeira precisão e consolo; o próprio acto de cuspir na rua parece que foi proibido, como pouco higiénico, pelas autoridades camarárias e o ministério da Qualidade de Vida; não tenho pijama, nem de flanela, nem às riscas. Pior que tudo: o exercício presume um contentamento interno, uma imbecilidade redonda, uma elevação ascética, que por enquanto não consegui ou mereço.»
VALENTE, Vasco Pulido, Às Avessas, Lisboa, Assírio & Alvim, 1990, p. 41.

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domingo, novembro 04, 2007

Corrupção

«Há uma boa miúda num bar de alterne que nos vai ajudar a apanhar os bandidos». A ideia está no filme produzido por Alexandre Valente, embora as palavras possam não ser exactamente estas, e resume o plot. A ficcionalização da história real – Sofia é contactada por um polícia antes de conhecer o Presidente do Clube e desvia-se do bom caminho porque se apaixona por «Luís» não convence ninguém. O que é grave num filme que se pretende um retrato realista da degradação moral do mundo de futebol e da sociedade portuguesa, partindo de uma história real.
A sequência da orgia sexual, que forneceu imagens à campanha publicitária, é dispensável. A maior parte das mulheres têm um ar boçal, o que podia ser um efeito pretendido. Os homens não parecem árbitros de futebol, mas actores porno, o que não surpreende.
O filme desilude? Sim. O filme está aquém das intenções de João Botelho e dá a entender que mesmo a versão final ficará aquém das expectativas dos espectadores? Sim. Arrependi-me de ver o filme? Não me arrependi e talvez o facto se deva a excesso cinéfilo da minha parte. Um filme é uma obra muito complexa e há quase sempre um aspecto que se aproveita. Neste caso, as interpretações de Margarida Vila-Nova e Nicolau Breyner, secundados por outros bons actores: Vergílio Castelo, Rita Blanco, Ruy de Carvalho, etc. Salva-se também um ou outro plano brilhante. E, nas categorias técnicas, a montagem, o guarda-roupa e a cenografia.
Não sei se a minha cinefilia militante chegará para ver a «versão do realizador». Mas tenho uma curiosidade: os 17 minutos que faltam devem atribuir-se apenas ao arrojo comercial do produtor ou à existência de cenas incómodas com personagens «elitistas e sulistas»?

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Leituras para a malta

Desde cedo achei que devia ler muito, tudo o que me caísse nas mãos e não apenas o que os outros me dissessem ser bom. Porém, não leio tanto como podia e sou por vezes surpreendido pelo que os outros lêem. Segundo consta, o Vasco Pulido Valente escreveu uma crónica nos anos 80 declarando que, em férias, entretinha-se a ler a lista telefónica vestido de pijama. Ao ver a reportagem na televisão sobre os seis meses de desaparecimento da Maddie fiquei a saber que a polícia encontrou no apartamento dos MacCann um manual de ocultação de cadáveres. A reportagem não esclareceu se o livro tinha parte sublinhadas e post-its com notas. Nenhum dos cônjuges, como é óbvio, leu o livro com o objectivo de saber o que um eventual assassino da filha podia ter feito ao seu corpo, pois ambos estão convencidos de que Maddie está viva e provavelmente em Marrocos. Há gente capaz de (ler) tudo.

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sábado, novembro 03, 2007

Almanaque do Povo

Aniversários: O Rua da Judiaria comemorou o seu quarto aniversário no passado dia 27; parabéns atrasados ao Nuno Guerreiro; já o Trento na Língua comemorou no feriado o seu primeiro ano de vida; felicitações!

Da leveza: A revista Minguante passou a publicação trimestral, e a sua oitava edição já está on-line.

Para além do blogues do costume: Alfredo Vieira inaugurou, recentemente, o seu blogue homónimo; Nuno Saraiva descreve, entre outros, os dias filarmónicos de Colares. Dei (via Cidade Viva) com uma inesperada colectividade na urbana Agualva -Cacém.

Há semanas que não ia ao cinema: e, à hora a que lá pude ir, só havia o Corrupção a jeito. Miserere mei. Gostava de saber por que parte do filme o Comendador João Botelho não se sente responsável: sob todos os aspectos, há muito que não via coisa tão mal atamancada. Se tiver capacidade para suspender a descrença enquanto a personagem principal consegue construir frases irónicas com recurso a expressões como "associação de socorros mútuos", se estiver disposto a acreditar que os maus se reúnem todos em conclave ao som de música napolitana, que o João Malheiro passa por relatador de futebol anónimo, e um político que levou com uma moca de Rio Maior diz aforismos como "toda a gente tem medo", então vá ver o filme, caro leitor.

quinta-feira, novembro 01, 2007

A Roda

Não fui aluna da Secundária Padre Alberto Neto, mas digamos que andei na mesma escola que Pedro Lomba. Explico: não fui colega do Dani, do Melão ou da Ana Sofia Vinhas, muito menos da Teresa Salgueiro ou do Nuno Santos [fico por aqui, que o et caetera relativo ao ex-Liceu Nacional de Queluz seria longo], e contudo a minha experiência é muito semelhante à descrita na crónica do DN; acho que não erro em dizer, RAF, que o insight sociológico do PL reflecte a experiência de milhares de outros da geração de setenta. Caracterizar essa experiência é perder-se numa apologia? A mim parece-me que é tentar perspectivar o sistema que permitiu essa mobilidade social que (consensualmente) se constata.
Mas se não chega aduzirmos à questão educativa o nosso testemunho, também não chegará lutarmos por uma ou outra convicção ideológica sem o conhecimento do que ensino em Portugal até agora foi. Porquê? Porque esse mesmo caminho determinou a sucessão das tão (também consensualmente) criticadas reformas pedagógicas das últimas décadas. A boa notícia é que muito já se escreveu e conhece em termos históricos e sociológicos acerca do último século e meio de ensino; agora era integrar essa informação no debate mediático. Facto é que o mínimo denominador comum de conhecimentos que o Estado português tem ministrado aos seus cidadãos importou muito para o processo de consolidação de si próprio. Quanto à transmissão desses conteúdos, público e privado coexistem (há muito), e assim deve ser num país democrático; já a definição e supervisão daqueles, se quisermos continuar a usufruir da coesão social característica de um estado-nação (liberal ou socialista), implica a existência de um órgão superior, politicamente responsabilizável. Em termos estruturais, continuamos a preocupar-nos mais com a reinvenção da roda do que com o seu regular movimento.

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Doc(less) Lisboa e Cinema para o Povo

Espanta-me esta súbita vaga de amor dos lisboetas pelos documentários sempre que vem o Festival. Espanta-me sobretudo a lassidão com depois aceitam ficar privados de tão indispensável sustento cinematográfico durante o resto do ano. Nada contra o festival e o novo marketing cultural (claro). Mas tudo a favor de programação regular de documentários (no São Jorge? na Cinemateca?) com debates a acompanhar (ou se calhar sou eu que ainda não me integrei no circuito, mas se é assim digam).

E que tal fazer um referendo (municipal) sobre o assunto?

E quanto ao que interessa? Filmes, então.
Gostei muito de Cuba: An African Odyssey no género documentário histórico testemunhal, em que a empatia não empata a pluralidade de testemunhos servida por uma boa montagem. Claro, muito passa em branco por essa via - por exemplo a afirmação de que os EUA ajudavam Portugal fechando os olhos a compara de material militar para as colónias; ou de que a PIDE (sem mais) matou Amílcar Cabral.

Gostei muito de Rock Soup - embora o som inicialmente estivesse insuportavelmente alto, e fosse sempre de má qualidade. Mas essa sujidade sonora de alguma forma ligava bem com o tema. Esta apropriadamente desequilibrada e belíssima Sopa da Pedra documental brilhou nas imagens a preto e branco à la Grande Depressão (como o autor confirmou no debate.) Ao contrário do que se esperararia do consenso supostamente dominantes ("nunca mais!" tal espetáculo de pobreza nos EUA, disse-se durante décadas) estes novos grandes deprimidos não conquistaram grandes simpatias. Um cinema libertário avesso ao politicamente correcto.

Gostei menos de Devil Came on Horseback. A história de um ex-capitão dos marines que se desengana das suas muitas ilusões no Darfur. Suponho que nos EUA este Mr.Smith goes to Sudan converta alguns, mas deixou-me com sentimentos ambíguos. Entre o fascinado com o ponto a que chega a ingenuidade excepcionalista norte-america - do tipo "Eu achava que logo que os EUA soubessem, salvavam o Darfur!". E o impressionado - inevitavelmente e apesar de tudo - com o por lá se passa. No fundo, Darfur merecia história melhor. Mas mais vale que se conte alguma. Por muito complexo que seja o contexto político e difícil a solução, o genocídio, esse, é claro como o sangue.
IMAGEM: Rock Soup in http://www.ifff.de/

Bernardo Soares versus Oculto

«Tive sempre uma repugnância quase física pelas coisas secretas – intrigas, diplomacia, sociedades secretas, ocultismo. Sobretudo me incomodaram sempre estas duas últimas coisas – a pretensão, que têm certos homens, de que, por entendimentos com Deuses ou Mestres ou Demiurgos, sabem – lá entre eles, exclusos todos nós outros – os grandes segredos que são os caboucos do mundo.
Não posso crer que isso seja assim. Posso crer que alguém o julgue assim. Por que não estará essa gente toda doida, ou iludida? Por serem vários? Mas há alucinações colectivas.
O que sobretudo me impressiona, nesses mestres e sabedores do invisível, é que, quando escrevem para nos contar ou sugerir os seus mistérios, escrevem todos mal. Ofende-me o entendimento que o homem seja capaz de dominar o Diabo e não seja capaz de dominar a língua portuguesa. Por que há o comércio com os demónios de ser mais fácil que o comércio com a gramática? Quem, através de longos exercícios de atenção e de vontade, consegue, conforme diz, ter visões astrais, por que não pode, com menor dispêndio de uma coisa e de outra, ter a visão da sintaxe? Que há no dogma e ritual da Alta Magia que impeça alguém de escrever, já não digo com clareza, pois pode ser que a obscuridade seja a lei oculta, mas ao menos com elegância e fluidez, pois no próprio abstruso as pode haver? Por que há-de gastar-se toda a energia da alma no estudo da linguagem dos Deuses, e não há-de sobrar um reles bocado com que se estude a cor e o ritmo da linguagem dos homens?
Desconfio dos mestres que o não podem ser primários. São para mim como aqueles poetas estranhos que são incapazes de escrever como os outros. Aceito que sejam estranhos; gostara, porém, que me provassem que o são por superioridade ao normal e não por impotência dele.
Dizem que há grandes matemáticos que erram adições simples; mas aqui a comparação não é com errar, mas com desconhecer. Aceito que um grande matemático some dois e dois para dar cinco: é um acto de distracção, e a todos nós pode acontecer. O que não aceito é que não saiba o que é somar, ou como se soma. E é este o caso dos mestres do oculto, na sua formidável maioria.»
SOARES, Bernardo, Livro do Desassossego, Lisboa, Assírio & Alvim, 2007, pp. 244-245.

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